D. Gaspar Barata de Mendonça

UMA GLÓRIA DO SARDOAL ANTIGO

D.GASPAR BARATA DE MENDONÇA

1º ARCEBISPO DA BAÍA (BRASIL)

Trabalho publicado no Boletim Cultural “ATRIUM” nº12

-Março a Setembro de 1988 - Edição do GETAS-Centro Cultural de Sardoal, elaborado pelo Exmº Sr. Dr. Manuel José de Oliveira Baptista.

1. Bosquejo histórico

Logo após o descobrimento do Brasil, em 3 de Maio de 1500, o Rei D. Manuel empenhou-se grandemente na sua colonização, não descurando o aspecto religioso - que tinha sido, aliás, uma das grandes traves-mestras da nossa expansão Além-Mar.

Um largo número de sacerdotes e Irmãos-leigos (catequistas, evangelizadores, cooperantes) seguiu rumo às terras de Santa Cruz - passando a ser coadjuvados, tempos depois, pelos missionários da Companhia de Jesus.

Tornou-se necessário, então, montar uma estrutura religiosa, ainda que incipiente e reduzida, para tão extenso território e, assim, no ano de 1551, o Papa Júlio III criava, na cidade da Baía, a primeira diocese do Brasil, com autonomia própria, desmembrando-a da Sé e metrópole do Funchal (à qual, até então, o Brasil estava sujeito) e incorporando-a na Igreja metropolítica de Lisboa.

Estabeleceu-se-lhe a sede na Baía de Todos-os-Santos e a catedral na Igreja de S. Salvador, da mesma cidade. Os seus limites futuros abrangeriam uma faixa de território com 50 léguas, medidas na linha da costa, e 20 para o interior. No entanto, e até que outras dioceses não viessem a ser criadas futuramente, a ela pertenceria a jurisdição plena sobre todo o território brasileiro.

A fundação da referida diocese resultava de um pedido formal de El-Rei D.João III ao referido Papa - o qual - acedendo pronta e gostosamente ao desejo do monarca português, logo deferiu a pretensão, através da bula “Super Specula”, de 28 de Fevereiro de 1551. Mas, o rei português estava tão certo de vir a ser atendido pela Santa Sé que, ainda não terminado o ano de 1550, logo mandara seguir a caminho do Brasil a D. Pedro Fernandes Sardinha, clérigo eborense de grande fama e nomeada, alto luminar em Teologia e Sagrada Escritura, figura de excepcional prestígio e notoriedade, que já havia estado na Índia como Vigário-Geral do Padroado Português do Oriente.

Seria, assim, o 1º Bispo daquela nova possessão portuguesa, uma vez que quási havia a certeza antecipada de o Papado dar completo assentimento à nomeação. Assim aconteceu, na verdade.

Dez Bispos vieram a preencher, entretanto, o sólio diocesano da mais importante cidade brasileira de então, até que em 1676, o Rei D. Pedro II, querendo dar, ainda maior imponência àquele centro apostólico, fez uma petição de carácter estritamente pessoal ao Papa Inocêncio XI, no sentido de elevar a mitra à dignidade de arquidiocese - o que, na escala hierárquica da Igreja, esplendia com maior alarde, fausto e imponência. E de seu moto-próprio, igualmente rogava ao Pontífice que, ao converter a catedral da Baía na distinção de metrópole-primaz do Brasil, nomeasse, também, como seu primeiro arcebispo, a Dom Gaspar Barata de Mendonça, “por saber” (sublinhava, ainda, o rei) “que nele concorriam e se exercitavam todas as virtudes e qualidades que era mister para tamanha dignidade” !

O Pontífice não teve que duvidar da palavra do monarca português - e, a breve trecho, fazia expedir a Bula “Inter Pastoralis Oficii”, de 16 de Novembro de 1676, alçando a diocese da Baía à categoria de metrópole e primaz de todo o Brasil, dando-lhe por sufragâneas as dioceses do Rio de Janeiro e de Olinda (criadas na mesma data), bem como as de Angola e Congo. Paralelamente, Sua Santidade mandava expedir, também, outra Bula, a “Divina Disponente Clementia”. com a nomeação oficial daquele Prelado, para seu primeiro Arcebispo.

2. Resenha biográfica

Mas quem era, afinal, Dom Gaspar Barata de Mendonça, de quem o Rei D. Pedro II tomava garantia e responsabilidade, perante o Papa, de representar uma escolha acertada, para tão elevado cargo?

Era um filho do Sardoal, nosso conterrâneo de pleno direito, nado e criado nesta mesma Vila - que, aliás, muito amou, para onde vinha sempre que lhe era possível e aonde se recolheu, depois, no dealbar da vida (não muito longa), e veio a dormir o sono eterno entre os seus familiares e amigos.

Nascera de uma família nobre e titular; pertencia, com efeito aos Mouras e Mendonças, fidalgos de alta estirpe, e senhores, além disso, de grandes domínios, em todo o concelho e seu termo.

Filho de Pedro Lopes Barata, também de Sardoal, e que havia de ocupar altos cargos na magistratura, Dom Gaspar nasceu em 3 de Agosto de 1627, vindo a falecer em 1686.

Talvez sugestionado pelo exemplo de seu Pai, resolveu seguir, igualmente, a carreira de Direito. Em Coimbra, onde estudou, deixaria marcada uma posição notável, pelas suas brilhantes classificações.

Enveredou, concretamente, pelo ramo da Magistratura - e, concluído o estágio preliminar, logo era nomeado Juiz de Comarca. Porém, de tal modo se havia de destacar no exercício das suas funções que, pouco tempo decorrido, se via nomeado “Juiz-de-Fora”. Talvez por aquiescência das competentes autoridades judiciais, ficou pertencendo à Correição de Tomar - o que o mantinha relativamente próximo da família e mais ligado aos seus domínios pessoais.

Parecia ir abrir-se-lhe, deste modo, uma carreira de grande relevo e projecção - quer pela família em que nascera, como pelas funções que desempenhava e, também, pela própria irradiação pessoal. Com efeito, uma referência esporádica, colhida acidentalmente em pequena nota biográfica de um seu contemporâneo, refere-o como “rodeado da consideração de todas as aristocracias, desde a do talento à do sangue, respeitado como uma pessoa de talento invulgar “(...)”onde floriam com exuberância as qualidades de presença e insinuação, a delicada sensibilidade, o fino trato, os subtis atributos de elegância mental e de sagacidade psicológica que determinara superioridade na convivência e a mais perfeita e harmónica e equilibrada elegância moral”. Por outro lado, a característica ancestral da sua ascendência fidalga, “a costela de ouro”, manifestava-se, ainda nele, curiosamente, por uma extrema religiosidade - grave, um pouco taciturna, solene, especial, “como de quem, pelo sangue, tivesse, até, o privilégio de ajoelhar mais perto de Deus”(!). Mas, no fundo, tudo aponta, no seu aspecto geral para que o possamos considerar, apesar de tudo, uma natureza simples, sem imodéstias nem petulâncias, desprendido de mundanidades e de ostentações.

Não obstante, algumas filhas-família de ramos aristocráticos da zona e de outras paragens começaram, desde logo, a fazer-lhe um cerco discreto, mas notório, candidatando-se à sua mão, por o considerarem um “bom partido”, como se diria na gíria popular de hoje...

Não serão de estranhar tais movimentações, até mesmo porque já nesse tempo, os censos da população mostravam um largo “superavit” de mulheres sobre os homens, em Portugal. E, se o fenómeno teria fácil explicação séculos antes, quer nas épocas da Reconquista como, mais tarde, durante os Descobrimentos e subsequente colonização portuguesa nos novos territórios incorporados, nessa segunda metade do século XVII, com o País a viver em clima mais ou menos tranquilo e calmo, tal disparidade não encontra, pelo menos à vista, grandes fundamentos de plausibilidade. Mas o facto é que assim acontecia. E, curiosamente se anotará que nos tempos de hoje, voltámos ao mesmo “status quo”...

Não obstante, porém, a grande projecção do seu nome, grandes susceptibilidades e preocupações começaram, nesta altura, a envenenar-lhe a consciência. Na verdade, cada vez mais se ia sentindo oprimido e aflito com certas decisões penais que tinha de tomar - embora procedesse sempre com o mais rigoroso escrúpulo. Sobretudo, o que o torturava de modo mais pungente era a pena de morte (ainda em plena voga, para os crimes tidos por mais graves) e que, por isso, tinha de sancionar, em muitos casos tipificados na Lei vigente.

Com efeito, a sua grande preocupação residia na eventualidade (mesmo remota, que fosse) de poder vir a condenar à pena capital um qualquer inocente, em que provas falseadas ou incompletas pudessem conduzir a um erro judiciário irreparável.

E esta ideia, avolumando-se no seu espírito, começou a trazê-lo agitado, convulso, apreensivo. Decerto que já se teria apercebido, algumas vezes, de depoimentos falsos e mal-intencionados, testemunhos perjuros, provas forjadas, indiciações estorcidas, de gente sem honra nem pejo, falha de todos os escrúpulos.

Para além disso, a pressão ambiental dos jurados, frequentemente boçais e sem o mínimo de preparação, não raras vezes manobrados habilmente por influências externas e, quantas vezes, acicatados pelo medo de represálias!

Sem fazer grandes extrapolações, ainda hoje, nestes nossos tempos que se julgariam mais limpos e honestos, as mesmas taras e aleijões embaraçam, obstruem e confundem, tantas vezes, os magistrados íntegros e rectos, que têm a missão dura, ingrata e espinhosa de julgar e de condenar, em nome da Lei.

Ora, aquele tão honrado e impoluto juiz, nosso conterrâneo, não conseguia, por todos esses motivos, um mínimo de tranquilidade para o seu espírito. E de tal modo se ia sentindo aterrado por poder vir a lavrar uma sentença injusta, susceptível de prejudicar gravemente um acusado que, certo dia, tomou uma resolução drástica: - pôs de lado toda a pompa e relevância das suas altas funções sociais e entrou num seminário! Quis ser padre - e, mais ainda, um sacerdote humilde e apagado, de tal modo que, logo após a ordenação, insistiu por que lhe dessem uma paróquia em aldeia distante “e fora do mapa”. Foi por seu pedido expresso que veio a tomar à sua conta o pastoreio de S. João de Gestaçô, do padroado de Unhão, na diocese do Porto.

Esse lugarejo, ainda que sede de freguesia civil e eclesiástica, era na altura um pequeno e simples povoado. Encravado no Douro, a dois passos de Amares, pertencia ao concelho de Unhão - posteriormente extinto.

Por meados do século XVII, toda a zona constituía um feudo dos Condes de Unhão, considerados entre as famílias mais poderosas e ricas de todo o Portugal.

Quando da nomeação do Rev. Gaspar Barata de Mendonça, como abade de Gestaçô, o titular em exercício era o 3º Conde e 11º Senhor da Casa de Unhão, Fernão Telles de Moura e Castro - o qual, além de deter imensos senhorios por quási todo o território nacional, desempenhava as funções de Coronel de um regimento de Ordenanças da Corte, era membro do Conselho de Guerra e Vedor da Fazenda da Repartição do Reino, acumulando com a dignidade de gentil homem da Câmara do Rei, deputado da Junta dos Três Estados (em que serviu mais de 40 anos!) e Governador e Capitão-General do Algarve.

Dizem as crónicas que este fidalgo, da primeira linhagem do País, possuía larguíssima cultura, a que aliava, por outro lado, uma grande formação moral e religiosa.

Ao saber das práticas dominicais do novo abade, que tinha vindo pastorear Gestaçô, a dois passos do seu palácio, quis, também, ir escutar o sacerdote de quem começara a ouvir os mais rasgados e fundos elogios.

E, de tal modo, também ele ficou preso da eloquência arrebatadora e persuasiva de Gaspar Barata de Mendonça que logo achou deslocada, para meio tão simples e rural, a capacidade oratória desse espírito que se lhe mostrava tão invulgarmente culto e erudito, que moveria todos os seus empenhos no sentido de o trazer para a capital, onde tais rasgos de eloquência poderiam ser bem mais reconhecidos e apreciados.

Decerto que terá deparado com forte relutância do visado - que aspirava inteiramente à vida desprendida e bucólica de aldeia, onde pudesse obter a recuperação psíquica de que necessitava. Não há, porém, elementos que o pormenorizem em detalhe, - embora sem dificuldades se possa intuir esse juízo.

Mas o certo é que, dentro de pouco, aquele sacerdote, nosso ilustre conterrâneo, vinha a caminho de Lisboa, para tomar o priorado de Santa Engrácia - que na época, se cotava como a freguesia mais importante de Lisboa, depois da Sé, onde os principais áulicos e dignatários da Corte, assim como grandes massas de fiéis, de outras categorias sociais, iam cumprir os deveres religiosos.

Mas a sua fama de sacerdote invulgar, que cada vez se tornava mais espalhada, iria levá-lo, também, ao desempenho de outros cargos importantes da Cùria Episcopal: -Desembargador da Relação Eclesiástica de Lisboa, Juiz dos Casamentos, Relator de Direito Canónico. Posteriormente, seria nomeado Governador do Bispado de Miranda, pelo impedimento do titular, Bisbo D. André Furtado de Mendonça.

Aí se encontrava quando a Bula “Divina Disponente Clementia”, de 16 de Novembro de 1676, emanada do Papa Inocêncio XI, o veio nomear para 1º Arcebispo da Baía, no Brasil, cuja arquidiocese era criada, na mesma data, por outra Bula especial, “Inter Pastoralis Officii” - como anteriormente se deixou referido.

Entregue a diocese de Miranda a outro Vigário-Geral, dispôs-se Dom Gaspar Barata de Mendonça a tomar o rumo das terras de Santa Cruz.

Uma doença grave acometeu-o, porém - e, de tal modo, que durante dez anos não mais recobrou a saúde, capazmente.

São dessa altura os seus longos períodos de vilegiatura e convalescença na zona de Arcez e Lapa, pertencente a seus familiares directos, onde em contacto pleno com a natureza dessa paisagem idílica e, ao mesmo tempo, sedativa e repousante, procurava aurir a saúde perdida.

Quanto à arquidiocese, para onde ansiava partir, ia-a governando, entretanto, por delegados de livre escolha e confiança pessoal, nunca deixando de estar ao corrente de tudo o que de mais importante se ia passando.

Mas a doença caminhava progressivamente e não o deixou vir a realizar a missão para que fora escolhido. E, assim, decerto a muito contragosto, mas por dever de lealdade e rectidão de consciência, pediu a renúncia à Santa Sé.

Faleceu em Sardoal, a 11 de Dezembro de 1686, e jaz sepultado num rico mausoléu, do lado da Epístola, e junto à Capela-Mór da Igreja de Santa Maria da Caridade - que, na altura, pertencia ao Convento Franciscano de Santo António, de cujos frades o venerando Antístite fora sempre grande amigo e desvelado protector