17. Centenário da República (I)

LEI DA SEPARAÇÃO DA IGREJA DO ESTADO

Antecedentes

Uma das primeiras medidas legislativas da recém implantada República Portuguesa foi o Decreto com força de Lei de 8 de Outubro de 1910, que deixava bem evidenciado o carácter anti-clerical do novo regime e antecipava a a Lei da Separação da Igreja do Estado que viria a ser publicada no dia 20 de Abril de 1911, uma das leis mais polémicas que alguma vez vigoraram em Portugal, cujos efeitos perduraram muito para além da I República.

Pelo seu interesse transcrevo o referido decreto, bem como as leis que repôs em vigor:

DECRETO COM FORÇA DE LEI DE 8 DE OUTUBRO DE 1910

(Mandando que continuem em vigor as leis de 3 de Setembro de 1759, 28 de Agosto de 1767 e 28 de Maio de 1834, sobre expulsão dos jesuítas e encerramento de conventos e anulando o decreto de 18 de Abril de 1901).

O Governo Provisório da República Portuguesa faz saber que em nome da República se decretou, para valer como lei, o seguinte:

Artigo 1º: Continua a vigorar como lei da República a de 3 de Setembro de 1759, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país e seus domínios «para nele mais não poderem entrar».

Artigo 2º: Continua também a vigorar como lei da República Portuguesa a de 28 de Agosto de 1767, igualmente promulgada sob o regime absoluto que «explicando e ampliando» a referida lei de 3 de Setembro de 1759, determinou que os membros da chamada Companhia de Jesus, ou jesuítas, fossem obrigados a sair imediatamente «para fora do país e seus domínios».

Artigo 3º: Continua também a vigorar com força de lei na República Portuguesa o decreto de 28 de Maio de 1834, promulgado sob o regime monárquico representativo, o qual extinguiu em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses, todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra.

Artigo 4º: É declarado nulo, por ser contrário à letra e ao espírito dos mencionados diplomas, o decreto de 18 de Abril de 1901, que disfarçadamente autorizou a constituição de congregações religiosas no país, quando pretendessem dedicar-se exclusivamente à instrução ou à propaganda da fé e civilização no ultramar.

Artigo 5º: Em consequência e de harmonia com o disposto nos artigos 1º a 3º e nos diplomas aí referidos serão expulsos do território da República todos os membros da chamada Companhia de Jesus, qualquer que seja a denominação sob que ela ou eles se disfarcem, e tanto estrangeiros ou naturalizados, como nascidos em território português, ou de pai ou mãe portugueses.

Artigo 6º: Os membros das demais companhias, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou outras casas de religiosos pertencentes a ordens regulares serão também expulsos do território da República, se forem estrangeiros ou naturalizados e se forem portugueses, serão compelidos a viver vida secular ou pelo menos a não viver em comunidade religiosa.

§ 1º: Para o efeito da disposição deste artigo, entende-se que vivem em comunidade os religiosos pertencentes a quaisquer ordens regulares, que residam ou se ajuntem habitualmente na mesma casa, ou sucessiva e alternadamente em diversas casas, em número excedente a três.

§ 2º: As pessoas referidas no parágrafo anterior são obrigadas a participar ao Governo, pelo Ministério da Justiça, por ofício registado numa estação postal, a localidade do território da República em que estabelecem o seu domicílio.

Artigo 7º: Os indivíduos compreendidos neste decreto que infringirem qualquer das suas disposições, ou deixarem de cumprir imediatamente, ou no prazo que lhes for marcado, as determinações legítimas da autoridade competente, incorrerão na pena de desobediência qualificada, sem prejuízo da responsabilidade que porventura lhes caiba por constituírem associações ilícitas, nos termos do artigo 282º do Código Penal, ou associações de malfeitores, nos termos do artigo 263º do mesmo código.

Artigo 8º: Os bens das associações ou casas religiosas serão arrolados e avaliados, precedendo imposição de selos e os das casas ocupadas pelos jesuítas, tanto móveis como imóveis, serão desde logo declarados pertença do Estado.

§ Único: Aos bens das outras casas religiosas dar-se-á proximamente destino no decreto orgânico sobre as relações do Estado Português com as igrejas ou em regulamento do presente decreto.

Artigo 9º: A execução deste decreto e dos diplomas mencionados nos artigos 1º a 3º fica especialmente incumbida ao Ministro da Justiça, que para este fim poderá reclamar dos magistrados judiciais e dos procuradores da República, seus delegados e subdelegados, os serviços de que carecer, inclusive para se estabelecer eficazmente a identidade dos indivíduos atingidos por este mesmo decreto.

Artigo 10º: O presente diploma com força de lei entrará imediatamente em vigor e será sujeito à apreciação da próxima Assembleia Nacional Constituinte.

Determina-se portanto que todas as autoridades a quem o conhecimento e a execução do presente decreto com força de lei pertencer o cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nele se contém.

Os Ministros de todas as repartições o façam imprimir, publicar e correr.

Dado nos paços do Governo da República, aos 8 de Outubro de 1910. = Joaquim Teófilo Braga = António José de Almeida = Afonso Costa = António Xavier Correia Barreto = Amaro de Azevedo Gomes = Bernardino Machado.

LEI DE 3 DE SETEMBRO DE 1759

DO MARQUÊS DE POMBAL

D. José por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves d’' aquém e dalém mar, em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc. Faço saber que havendo sido infatigáveis a constantíssima benignidade e a Religiosíssima Clemência, com que desde o tempo em que as operações que se praticaram para a execução do Tratado de Limites das Conquistas, sobre as informações e provas mais puras e autênticas e sobre a evidência dos factos mais notórios, não menos do que a três Exércitos, procurei aplicar todos quantos meios, a Prudência e a Moderação podiam sugerir, para que o governo dos Regulares da Companhia denominada de Jesus, das Províncias destes Reinos e seus Domínios, se apartasse do temerário e façanhoso projecto, com que havia intentado e clandestinamente prosseguido a usurpação de todo o Estado do Brasil, com um tão artificioso e tão violento progresso que, não sendo pronta e eficazmente atalhado, se faria dentro do espaço de menos de dez anos inacessível e insuperável a todas as forças da Europa unidas. Havendo (em ordem a um fim de tão indispensável necessidade) exaurido todos os meios que podiam caber na união das Supremas Jurisdições, Pontifícia e Régia; por uma parte reduzindo os sobreditos Regulares à observância do seu Santo Instituto por um próprio e natural efeito da Reforma à minha Instância ordenada pelo Santo Padre Benedito XIV de feliz recordação e pela outra parte apartando-os da ingerência nos negócios temporais, como eram a administração secular das Aldeias e o domínio das Pessoas, Bens e Comércio das Índias daquele continente. Por outro igualmente próprio e natural efeito das saudáveis Leis que estabeleci e excitei a estes urgentíssimos respeitos. Havendo por todos estes modos procurado que os sobreditos Regulares, livres de contagiosa corrupção com que os tinha contaminado a hidrópica sede dos governos profanos, das inquisições de terras e estados e dos interesses mercantis, servissem a Deus e aproveitassem ao Próximo como bons e verdadeiros Religiosos e Ministros da Igreja de Deus, antes que pela total depravação dos seus costumes, viesse a acabar necessariamente nos mesmo Reinos e seus Domínios uma Sociedade que neles entrara dando exemplos e que havia sempre sido tão distintamente protegida pelos Senhores Reis Meus Gloriosíssimos Predecessores, e pela minha real e sucessiva Piedade. E havendo todas as minhas sobreditas diligências ordenadas à conservação da mesma Sociedade sido por ela contestadas e invalidados os seus pios e naturais efeitos por tantos, tão estranhos e tão inauditos atentados, como foram, por exemplo, o com que à vista e face de todo o Universo, declararam e prosseguiram contra Mim nos mesmos Domínios Ultramarinos, a dura e aleivosa guerra que tem causado um tão geral escândalo, o com que dentro do meu mesmo Reino suscitaram também contra mim as sedições intestinas, com que armaram para a última ruína da minha Real Pessoa os meus mesmos Vassalos, em que acharam disposições para os corromperem, até os precipitarem no horroroso insulto perpetrado na noite de três de Setembro do ano próximo precedente, com abominação nunca imaginada entre os Portugueses e o com que depois que erraram o fim daquele execrando golpe contra a minha Real Vida, que a Divina Providência preservou com tantos e tão decisivos milagres, passaram a atentar contra a minha Fama a cara descoberta, maquinando e difundindo por toda a Europa, em causa comum com os seus sócios das outras Regiões, os infames agregados de disformes e manifestas imposturas, que contra os mesmos Regulares tem retorquido a universal e prudente indignação da mesma Europa. Nesta urgente e indispensável necessidade de sustentar a minha Real Reputação, em que consiste a Alma vivificante de toda a Monarquia que a Divina Providência me devolveu para conservar indemne e ilesa a autoridade que é inseparável da sua independente soberania, de manter a paz pública dos meus Reinos e Domínios e de conservar a tranquilidade e interesses dos meus fiéis e louváveis Vassalos, fazendo cessar neles tantos e tão extraordinários escândalos e protegendo-os e defendendo-os contra as intoleráveis lesões de todos os sobreditos insultos e de todas as funestas consequências que a impunidade deles não poderia deixar de trazer após si. Depois de ter ouvido os Pareceres de muitos Ministros doutos, religiosos e cheios de zelo da honra de Deus, do meu Real serviço e decoro e do Bem comum dos meus Reinos e Vassalos que houve por bem consultar e com os quais fui servido de conformar-me. Declaro os sobreditos Regulares na referida forma corrompidos, deploravelmente alienados do seu santo Instituto e manifestamente indispostos com tantos, tão abomináveis, tão inveterados e tão incorrigíveis vícios para voltarem à observância dele, por Notórios Rebeldes, Traidores, Adversários e Agressores que têm sido e são actualmente contra a minha Real Pessoa e Estados, contra a paz pública dos meus Reinos e Domínios e contra o Bem comum dos meus fiéis Vassalos, ordenando que como tais sejam tidos, havidos e reputados. E os hei, desde logo, em efeito desta presente Lei por desnaturalizados, proscritos e exterminados, mandando que efectivamente sejam expulsos de todos os meus Reinos e Domínios para neles mais não poderem entrar. E estabelecendo debaixo de pena de morte natural e irremissível e de confiscação de todos os bens para o meu Fisco e Câmara Real, que nenhuma pessoa de qualquer estado e condição que seja, dê nos mesmos Reinos e Domínios entrada aos sobreditos Regulares ou qualquer deles, ou que com eles, junta ou separadamente, tenha qualquer correspondência verbal ou por escrito, ainda que hajam saído da referida Sociedade e que sejam recebidos ou Professos em quaisquer outras Províncias, de fora dos meus Reinos e Domínios, a menos que as Pessoas que os admitirem ou praticarem, não tenham para isso imediata e especial licença minha. Atendendo, porém, a que aquela deplorável corrupção dos ditos Regulares (com diferença de todas as outras Ordens Religiosas, cujos comuns se conservaram sempre em louvável e exemplar observância) se acha infelizmente no Corpo que constitui o governo e o comum da sobredita Sociedade. E havendo respeito a ser muito verosímil que nela possa haver alguns Particulares Indivíduos daqueles que ainda não haviam sido admitidos à Profissão solene, os quais sejam inocentes, por não terem ainda feito as provas necessárias para lhes confiarem os horríveis segredos de tão abomináveis conjurações e infames delitos. Nesta consideração, não obstante os Direitos comuns da Guerra e da Represália, universalmente recebidos e quotidianamente observados na praxe de todas as Nações civilizadas, segundo os quais Direitos todos os indivíduos da sobredita Sociedade, sem excepção de algum deles, se acham sujeitos aos mesmos procedimentos, pelos insultos contra Mim e contra os meus Reinos e Vassalos, cometidos pelo seu pervertido governo. Contudo, reflectindo a minha benigníssima Clemência na grande aflição que hão-de sentir aqueles dos referidos Particulares que havendo ignorado as maquinações dos seus Superiores, se virem proscritos e expulsos, como parte daquele Corpo infecto e corrupto, permito que todos aqueles ditos Particulares que houverem nascido nestes Reinos e seus domínios, ainda não solenemente professos, os quais apresentarem Demissórias do Cardeal Patriarca Visitador e Reformador Geral da mesma Sociedade, porque lhes relaxe os Votos Simplices que nela houverem feito, possam ficar conservados nos mesmos Reinos e seus Domínios, como Vassalos deles, não tendo, aliás, culpa pessoal provada que os inabilite. E para que esta minha Lei tenha toda a sua cumprida e inviolável observância e se não possa nunca relaxar pelo lapso de tempo em comum prejuízo numa tão memorável e necessária disposição: estabeleço que as transgressões dela fiquem sendo casos de Devassa para delas inquirirem presentemente todos os Ministros Civis e Criminais nas suas diversas jurisdições, conservando sempre abertas as mesmas Devassas, a que agora procederem, sem limitação de tempo e sem determinando número de testemunhas. E dando conta de assim o haverem observado e do que resultar das suas inquirições ao Ministro Juiz da Inconfidência, sem o que aos sobreditos Magistrados se possam dar por correntes as suas residências, enquanto não apresentarem certidão do referido Juiz da Inconfidência.

E esta se cumprirá como nela se contém. Pelo que mando à Mesa do Desembargo do Paço, Regedor da Casa da Suplicação, ou quem seu cargo servir, Conselheiros da Minha Real Fazenda e dos meus Domínios Ultramarinos, Mesa da Consciência e Ordens, Senado da Câmara, Junta do Comércio destes Reinos e seus Domínios, Junta de Depósito Público, Capitães Generais, Governadores, Corregedores, Juízes e mais Oficiais de Justiça e Guerra, a quem o conhecimento desta pertence, que a cumpram e guardem e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém, sem dúvida ou embargo algum e não obstante quaisquer Leis, Regimentos, Alvarás, Disposições ou Estilos contrários, que todas e todos Hei por derrogados, como se deles fizesse individual e expressa menção, para este efeito somente, ficando aliás sempre em seu vigor. E ao Doutor Manuel Gomes de Carvalho, Desembargador do Paço, do meu Conselho e Chanceler – Mor destes meus Reinos. Mando que a faça publicar na Chancelaria e que dela se remetam cópias a todos os Tribunais, Cabeças de Comarcas e Vilas destes Reinos, registando-se em todos os lugares onde se costumam registar semelhantes Leis. E mandando-se o original para a Torre do Tombo. Dada no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, aos três de Setembro de mil setecentos e cinquenta e nove. = Rei = Conde de Oeiras.

Lei por que Vossa Majestade é servido de exterminar, proscrever e mandar expulsar dos seus Reinos e Domínios os Regulares da Companhia denominada de Jesus, a proibir que com eles se tenha qualquer comunicação verbal ou por escrito, pelos justíssimos e urgentíssimos motivos acima declarados e debaixo das penas nela estabelecidas.

Para Vossa Majestade ver. = Filipe José da Gama a fez.

Registada na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino no livro das Cartas, Alvarás e Patentes a fls. 52. Nossa Senhora da Ajuda, a 4 de Setembro de 1759. = Joaquim José Borralho = Manuel Gomes de Carvalho.

Foi publicada esta Lei na Chancelaria Mor da Corte e Reino. Lisboa, 3 de Outubro de 1759 – D. Sebastião Maldonado.

Registada na Chancelaria Mor da Corte e Reino no livro das Leis a fls. 128. Lisboa, 3 de Outubro de 1759 = Rodrigo Xavier Álvares de Moura.

Foi impressa na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino.

LEI DE JOAQUIM ANTÓNIO DE AGUIAR

RELATÓRIO

SENHOR


Está hoje extinto o prejuízo que durou séculos de que a existência das Ordens Regulares é indispensável à Religião Católica e útil ao Estado e a opinião dominante é que a Religião nada lucra com elas e que a sua conservação não é compatível com a civilização e luzes do século e com a organização política que convém aos Povos.

Jesus Cristo não as criou – os Apóstolos desconheceram-nas – o estabelecimento da Igreja e a propagação do Evangelho fez-se nos primeiros séculos de um modo prodigioso sem a cooperação das Ordens Regulares – as perseguições afugentaram das Cidades muitos homens que achando nos desertos a paz e a liberdade de exercitar a Religião perseguida foram obrigados a refugiar-se neles – O Império Romano tornou-se Cristão, os desertos acharam-se povoados de Cenobitas e apesar de haverem cessado os motivos que aí conduziram os primeiros, continuaram a povoar-se deles – O entusiasmo duma devoção solitária levou também aos ermos muitos devotos, como o medo da morte levara os primeiros Cristãos. Associações assim formadas nos desertos e nos ermos deram origem às Ordens Regulares. Mas em pouco tempo foi esquecido o modelo que elas apresentavam para seguir-se. Essas instituições passaram do Oriente para o Ocidente e já no século V A havia aí um prodigioso número de Conventos e já os Religiosos de então se pareciam tanto com aqueles primeiros ascetas, quanto a Roma de Nero se assemelhava à de Numa. A história deste e dos séculos seguintes oferece um contraste notável entre uns e outros: uns fugiram das cidades e povoações para se purificarem no ermo com os pensamentos da eternidade. Eram leigos que procuravam a clausura, não por modo de vida, mas por uma devoção espontânea; eram Cidadãos úteis, apesar de separados da sociedade, porque tiravam a sua subsistência não dos fiéis, nem do Estado, mas do trabalho das suas mãos, a que indispensavelmente consagravam muitas horas por dia em todo o decurso do ano; tudo neles era modesto e humilde; o seu sustento, os legumes que as suas fadigas extorquiam aos baldios ermosos e quase infecundos. Os seus hábitos, panos grosseiros, curtos e acomodados a suas fadigas. As suas celas, grutas e choupanas. Os seus templos, pequenos oratórios: uma Cruz informe e as relíquias dos Mártires, todo o seu tesouro. Os outros, pelo contrário, fugiram como espavoridos da solidão dos povoados e para as cidades mais ricas e populosas. Abandonaram o trabalho como indecoroso ao carácter sacerdotal a que foram elevados. Obtiveram e arrancaram muitas vezes dos Príncipes e dos Povos, doações ilimitadas e privilégios, os mais odiosos inventaram outros e fabricaram os títulos. Tiveram mesas lautas e regaladas. Edificaram casas sumptuosas e magníficos templos: Atentaram contra a segurança e contra a autoridade dos Reis e contra os Povos. Derramaram o fanatismo pelas diferentes classes dos Estados. Perturbaram a paz da Igreja e Sociedade com dissensões e discórdias, que começando por subtilezas escolásticas sempre odiosas e quase sempre ridículas, acabaram algumas vezes em brigas e assassínios dentro dos próprios templos, Substituíram às puras e sãs doutrinas do Evangelho, falsas legendas, milagres e aparições e revelações fabulosas e observadas. Excogitaram os mais astuciosos meios de amontoar riquezas. Propagaram a crença. Propagaram a crença que durou séculos de que os pecados eram perdoados a quem mais desse aos Mosteiros. Acreditou-se que o meio mais seguro da salvação das almas era fundar uma casa religiosa ou deixar todos os bens e a infeliz geração que se reputava de próxima à catástrofe que devia extingui-la, de boa mente dava aos Mosteiros o que tinha e os religiosos ainda que não pareciam duvidar de irem cedo gozar duma melhor sorte na eternidade, foram aceitando as doações e guardando os títulos em seus arquivos, para que da sua parte não estivesse qualquer dúvida que pudesse haver na salvação das almas dos piedosos doantes. Patentearam enfim de todos os modos a ambição inseparável de Corporações poderosas que tinham a seu favor a credulidade dos Povos e, por consequência, a sua imoderada liberdade. E por meio de tão fecundas fontes conseguiriam apoderar-se de todos os bens do Mundo, se o número dos timoratos e dos crédulos não tivesse diminuído com a penetração das luzes e os Príncipes não tivessem limitado as aquisições por meio de Leis muitas vezes repetidas. A opulência e o luxo dos Religiosos chamaram ao seio destas associações, em lugar de homens levados a elas por uma vocação sincera, os que queriam gozar aí as comodidades que podiam encontrar no século.

Não são estas, Senhor, asserções sem fundamento, ou acusações vagas. Os Escritores mais insignes por sua Religião e por sua Piedade deixaram em seus Escritos abundantes provas. A relaxação das Ordens Regulares devia ser uma influência poderosa na moral pública e na Igreja, principalmente depois do Século XIII, quando apareceram no Mundo as quatro famílias dos mendicantes, que rivalizando e excedendo logo todas as criações dos Séculos passados agravaram ainda tantos males: Intrometeram-se nos negócios civis de maior momento, pregaram com a maior veemência a intolerância e pronunciaram-se, abertamente, contra a supremacia do Poder Temporal e contra a plenitude do Poder Espiritual, que compete aos Bispos, como sucessores dos Apóstolos. “O que foram os Jesuítas depois do Concílio de Trento (diz um grande Canonista do nossos tempos) eram os Franciscanos e Domínicos do Século XIII até àquele Concílio.”. Foi então, principalmente, que se manifestaram em toda a sua luz os efeitos subversivos das isenções. Estas emancipações da autoridade Episcopal, como as civis o são da autoridade paterna, estas emancipações (para me servir da expressão de S. Bernardo, que tanto as detestou) foram atentatórias dos direitos sagrados que Jesus confiara aos Apóstolos e seus sucessores. Os Bispos cessaram, em consequência delas, de ser Prelados de todos os seus Diocesanos, porque uma parte lhes foi alienada. E esta alienação que só parecia prejudicar o regime interno da Igreja, não só teve ainda relação nos seus efeitos com o Poder dos Príncipes, mas dissolveu o vínculo que podia mais de perto prender os Regulares ao desempenho de seus deveres e habilitou-os para viverem em mais desenfreada licença, não só porque os seus interesses triunfaram de todos os obstáculos legítimos, mas porque de facto não ficaram tendo superior sobre a terra, tendo um tão remoto e ocupado dos negócios da Cristandade inteira. Outro inconveniente resulta ainda bem grave e que não foi sentido senão muito tarde e quando já tinha produzido estragos irreparáveis na moral. Quero falar da diminuição da autoridade Paroquial. Esta foi absorvida em grande parte pelas Ordens Religiosas em geral, mas principalmente pelos corpos Mendicantes. Chamaram a si a administração de quase todos os sacramentos e, com preferência do mais importante enquanto regula os movimentos do espírito e do coração humano, que é a penitência. Os costumes sofreram com isto uma inevitável relaxação e aqueles a quem o Direito Divino constituiu ata atalaias e zeladores desses costumes, juízes das consciências e imediatos distribuidores do Pasto Espiritual, não puderam conhecer mais o seu rebanho que a cada momento se lhe subtraia. Acresceu a estes males um último que devia derivar-se de tão estreitas relações entre aqueles e o Povo. Este recebeu todas as doutrinas boas e más, devorou todo o seu fanatismo, respeitou-os, socorreu-os com excesso e eles tiveram todos os vícios dos mendigos que levaram pelo seio das famílias. O estado das Ordens Regulares e sua desregrada conduta deu muitas vezes lugar a queixas amargas e enérgicas, mas sempre inúteis reclamações e a divisões funestas à paz da Igreja e do Estado e cuja narração a história transmitiu à posteridade em longas páginas. Diferentes reformas auxiliadas pelos esforços dos Concílios, dos Pontífices, dos Bispos e dos Imperantes Civis se foram sucedendo através dos tempos. Porém mal podia esperar-se que alguma delas desarreigasse os vícios inerentes aos estabelecimentos e com efeito o resultado foi nenhum. O mal foi progredindo. Proibiu-se a fundação de novos Institutos, extinguiram-se diferentes Mosteiros, porém este remédio não bastou para curá-lo.

A história das Ordens religiosas é quase a mesma em todas as Nações em que foram admitidas. Pode dizer-se que em todas os mesmos princípios e os mesmos meios serviram ao seu estabelecimento, que em toda a parte se encontram nelas a mesma relaxação e os mesmos abusos e que as consequências para a Moral, para a Religião e para o Estado, tem ainda sido as mesmas. Folheando-se os anais da História Portuguesa e documentos antigos e modernos achar-se-ão abundantes provas desta verdade pelo que toca a Portugal e não faltarão, particularmente, exemplos de actos de ousada temeridade contra os direitos dos Príncipes e contra os mais sagrados interesses dos Povos, de ingerência nos negócios civis e políticos e duma desordenada ambição de riquezas.

Em nosso tempo, Senhor, quantas vezes não se tem urdido no Claustro insidiosas tramas contra o Trono Legítimo e contra a civilização e liberdade nacional! Não é necessário recordar antigos factos. Basta o que se tem passado desde 1820. Desde esta época os Religiosos não contentes de extraviarem das ideias da liberdade, com sua magia sagrada, os espíritos fracos por veredas tortuosas, depondo todos os respeitos, correram como ondas medonhas a investir de todos os lados a Nau soçobrada do Estado. As Casas Religiosas foram convertidas em assembleias revolucionárias, os Púlpitos em tribunais de calúnias facciosas e sanguinolentas e os Confessionários em oráculos de fanatismo e de traição. A Nação inteira viu uma parte do Clero Regular trocando a Milícia de Deus pela Milícia secular, abandonando efectivamente o Santuário, cuja potência os não secundava, despojando o culto de suas opulências para as converter em meios e estímulos de guerra, distribuindo com uma mão as relíquias dos Santos e com a outra as armas fratricidas, alterando as verdades do Evangelho com as mentiras mais absurdas, as orações com as proclamações mais ferozes e para cúmulo de horror, perpetrando na solidão da noite desacatos inauditos para os assoalhar de dia como obra dos Liberais. A Nação toda o viu alistado nesses bandos de selvagens assim por ele fanatizados, correndo as fileiras, cingindo em vez do cilício que lhe cumpria trazer, a espada que deverá exterminá-lo e disparando raios de morte com as mãos que foram sagradas para suplicar e atrair as bençãos do Céu sobre os seus semelhantes, incitando com a sua palavra e com o exemplo, ao roubo, ao assassínio e ao incêndio. Submetendo, enfim, a Religião aos caprichos duma imaginação delirante e furiosa. Mas para que é tocar em feridas tão recentes que ainda magoam o Religioso Coração de V.M.I., individualizando mais os meios tenebrosos e imprudentes de que se serviu esse sustentáculo da superstição e do despotismo para expulsar do Governo a V.M.I., porque nem era escravo dele, nem tirano de seus súbditos e para privar do Trono a Rainha, porque o Sistema Liberal com que devia reger lhe não convinha?

O pouco que deixo ponderado sobre este objecto é sobejo para que V.M.I. tome em consideração, na medida que tenho de propor-lhe, a incompatibilidade das Instituições Liberais que V.M.I. se dignou outorgar à Nação Portuguesa, com a conservação de institutos que, geralmente falando, se têm mostrado contrários à Liberdade e nos quais ela achará sempre um poderoso estorvo a consolidar-se.

Porém, longe de mim, Senhor, a ideia de compreender todo o Clero Regular na generalidade das acusações feitas contra ele. As Ordens Regulares têm tido, e têm hoje, homens de sólida virtude, de distinto saber e de extremado patriotismo. Muitos, Senhor, tem V.M.I. visto expondo no Campo da Batalha suas vidas pelo Trono da RAINHA e pela liberdade da sua Pátria. Outros foram vítimas, no tempo do governo do usurpador, dos furores com que foi perseguida a fidelidade e a honra. Mas são estes mesmos a pedra de escândalo das Corporações a que pertencem e o alvo das suas perseguições. Estes, vencendo a força de seus viciosos institutos e da geral corrupção, são dignos de particular louvor e hão-de, sem dúvida, merecer a especial protecção de V.M.I. Eles devem reconhecer que se os prejuízos têm conservado as Ordens Regulares em pouca conformidade, com a verdadeira Religião, que tanto desacreditam com seu exemplo, as circunstâncias reclamam, hoje, a sua inteira extinção.

A existência das Ordens Religiosas não se combina com as máximas duma sã política e é destrutiva dos fundamentos da prosperidade pública. A força duma Nação depende da sua população. A população dos casamentos. O maior número de casamentos, do maior de proprietários. As Ordens Religiosas são duplicadamente prejudiciais à população: como celibatários deixam grande vazio nas gerações. Como corpos de mão morta, absorvendo enormes propriedades que não se tornam mais a alienar, fazem com que um número considerável de indivíduos não possam ter um palmo de terra e por conseguinte se condene também a um celibato necessário. Subdividindo-se e mobilizando-se esses enormes fundos territoriais que resultará? O Estado lucrará nos direitos provenientes de compras e vendas, tornadas então possíveis e prováveis. A agricultura prosperará porque todos esses terrenos limitados e postos em relação com as forças físicas de seus futuros possuidores serão bem cultivados e sempre com géneros úteis. A indústria e comércio, por uma consequência necessária receberão o seu acréscimo da actividade. A convicção das vantagens duma tal medida repassará até à última camada social, para a qual o melhor argumento é a riqueza. A população se aumentará e com ela todas as forças do Estado.

Em conclusão, Senhor, é força extinguir as Ordens Regulares e dar destino aos bens que possuem. O bem público, a felicidade da Nação que tantos sacrifícios deve a V.M.I., a pureza do culto que V.M.I. tanto se desvela em promover, a regeneração do Povo Português, que V.M.I. tem tanto a peito consolidar, tudo reclama aquela extinção. Pretender, ainda, reformá-las é inútil. As reformas feitas por sábios e virtuosos Varões desde o século V não puderam melhorá-las e o mesmo seria o resultado de qualquer outra reforma. Arrancá-las do meio do século, onde lançaram raízes, para as repor no deserto, obrigando os Religiosos a sustentar-se do trabalho das suas mãos é impossível. Sujeitá-las em tudo e por tudo aos Bispos, não é evitar os inconvenientes da conservação delas. É tempo que a razão acorde dessa espécie de letargia, em que jazeu por séculos, agora que o longo eclipse da justiça e das luzes passou, é prudente, é nobre, é necessário que V.M.I. não cerque o Trono de Sua Augusta Filha desses corpos, que uma vez têm feito curvar diante de si os Reis, outras vezes têm feito curvar os Povos diante dos interesses dos Reis, seus protectores, que eles enlaçam com os interesses de Deus. Os Tronos Constitucionais, como o da Augusta filha de V.M.I., cercam-se da felicidade dos Povos. Guarda a mais zelosa, a mais forte e a mais duradoura.

Só o hábito de ver subsistir aquela instituição formou o prejuízo de pensar que ela era útil realmente e em vez de se escutar a razão para julgar, não se têm empregado as luzes senão e, procurar motivos para provar o que ela nega. Sim, Senhor, a razão imparcial tem plenamente confirmado as doutrinas, que com toda a franqueza ouso levar à Presença Augusta de V.M.I., e à vista das quais tenho a honra de propor a V.M.I o seguinte projecto de decreto.

Paço das Necessidades, em 28 de Maio de 1834 = Joaquim António de Aguiar.

DECRETO

Tomando em consideração o relatório do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça e tendo ouvido o Conselho de Estado: Hei por bem, em Nome da RAINHA, decretar o seguinte:

Artigo 1º: Ficam desde já extintos em Portugal, Algarves, Ilhas Adjacentes e Domínios Portugueses, todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as Ordens Regulares, seja qual for a sua denominação, instituto ou regra.

Artigo 2º: Os bens dos conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos das Ordens Regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional.

Artigo 3º: Os vasos sagrados e paramentos que serviam ao culto divino serão postos à disposição dos Ordinários respectivos para serem distribuídos pelas Igrejas mais necessitadas das dioceses.

Artigo 4º: A cada um dos religiosos dos conventos, mosteiros, colégios, hospícios ou quaisquer casas extintas será paga pelo Tesouro Público, para sua sustentação, uma pensão anual, enquanto não tiverem igual, ou maior rendimento de benefício, ou emprego público. Exceptuam-se:

§ 1º: Os que tomaram armas contra o Trono legítimo ou contra a Liberdade Nacional.

§ 2º: Os que em favor da usurpação abusaram do seu ministério no confessionário ou no púlpito.

§ 3º: Os que aceitaram benefício ou emprego do Governo do usurpador.

§ 4º: Os que denunciaram ou perseguiram directamente os seus concidadãos por seus sentimentos de fidelidade ao Trono legítimo e de adesão à Carta Constitucional.

§ 5º: Os que acompanharam as tropas do usurpador.

§ 6º: Os que no acto de restabelecimento da autoridade da RAINHA, ou depois dele, nas terras em que residiam, abandonaram os seus conventos, mosteiros, colégios, hospícios ou casas respectivas.

Artigo 5º: Ficam revogadas todas as leis e disposições em contrário.

O Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça o tenha assim entendido e o faça executar. Paço das Necessidades, em 28 de Maio de 1834. = D. PEDRO, Duque de Bragança. = Joaquim António de Aguiar