9. Rota do Pão II

TRIOLOGIA: HOMEM/ÁGUA/VENTO

A produção de farinha, produto indispensável à alimentação, dependeu, no Concelho de Sardoal, até há escassas décadas, da moagem em moldes artesanais. Esta era assegurada por instalações moageiras que aproveitavam energias naturais e que, consoante as fontes energéticas se repartiam por: moinhos de vento e moinhos de água (azenhas).

De facto, moinhos de vento e azenhas, no Concelho de Sardoal, alternavam sazonalmente o seu funcionamento, rentabilizando e aumentando deste modo a produção de farinhas.

Aproveitavam-se, assim, os cursos de água no período de inverno e a energia do vento no período estival.

Os moinhos de vento existentes na área do Concelho são do tipo mediterrânico, fixos, de torre, como em geral em toda a Estremadura e fazem mover o tejadilho - no sentido de procurar a melhor orientação das velas face ao vento.

A localização dos moinhos de vento obedeceu ao princípio de aproveitamento de energia do vento a partir de cumes elevados ou flancos de elevações.

Vestígios da sociedade pré-industrial, os moinhos são, antes de mais, marcas na paisagem. Fossem torres cilíndricas pontuando a orografia ou azenhas implantadas na corrente das ribeiras, os moinhos marcavam com a sua presença física funções económicas concretas e vitais para as comunidades em que se inseriam.

O desenvolvimento da moagem económica - e mais tarde da moagem americana - que permitiam uma melhor selecção dos grãos e diversificação das farinhas e a maior produção da taxa de farinha branca, aliado às inovações técnicas e à utilização de novas energias, nomeadamente o vapor e depois a electricidade, trouxeram à moagem tradicional, a partir do século passado, os primeiros sinais de decadência que se prolongariam até quase aos nossos dias.

No Concelho de Sardoal, a decadência da moagem artesanal reflectiu-se nos dois tipos de unidades referidas, sendo as azenhas as que continuaram a resistir até mais tarde.

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento industrial da panificação retirava também à economia doméstica a exclusividade do fabrico do pão que passava a ser adquirido nas padarias.

Suprindo as carências da farinação das populações urbanas, as fábricas fizeram desaparecer a actividade moageira tradicional, ainda que as comunidades rurais tivessem continuado durante muito mais tempo a fabricar em casa o pão necessário ao sustento das famílias e, em consequência, a recorrer à moagem artesanal dos cereais.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira Moinho é um engenho composto de duas pedras ou mós, accionadas pelo vento, água ou motor, colocadas uma sobre a outra e destinado a moer, especialmente, cereais; azenha.

A história do moinho data do tempo em que o homem procurou o meio de moer os cereais para a sua alimentação. Parece que, então, procurou achar máquinas que lhe diminuíssem a penosa tarefa de fabricar farinha. Esmagou o cereal primeiro entre duas pedras e depois recorreu ao pilão e ao graal. O primeiro aperfeiçoamento que se pode conseguir foi o emprego de um engenho que pusesse em movimento duas pedras maiores do que aquelas que um homem podia mover com o simples auxílio das mãos. Apareceu, então o moinho-a-braços. Nos tempos bíblicos e nos tempos heróicos da Grécia, empregavam-se duas pequenas mós cilíndricas de pedra rija que as escravas e outras mulheres faziam girar. Também há notícia de moinhos portáteis. Pela Bíblia vê-se que se fazia uso do moinho-de-braço. No Egipto, na Arábia, na Palestina e mesmo na Grécia, eram as raparigas que faziam girar esses moinhos. Mostra-se na cidade de Meca uma concavidade onde, segundo a tradição, Fatmé, filha de Maomé, fazia andar um moinho. As mulheres dos xeques árabes ainda hoje se consagram a essa dura ocupação. Os Romanos, depois das suas conquistas na Ásia, começaram usando os moinhos, aos quais aplicaram a força dos escravos e dos condenados, e mais tarde a dos animais. Isto foi já um grande impulso para o progresso, mas a invenção dos moinhos-de-água foi o que abriu uma nova era na moagem. Esta só se abriu quando Constantino aboliu a escravidão. As azenhas são monumentos árabes.

O moinho-de-vento é, pelo menos, tão antigo como o de água, pois que data do século IV. Na Península a acreditar em alguns escritores, os moinhos-de-vento vieram com os Cruzados, isto é, no século XI. Em Portugal já se vêem poucos moinhos em laboração. Para se avaliar da antiguidade da moenda dos cereais em Portugal, da importância crescente dessa indústria e do grande número de moinhos já existentes nos primeiros anos da monarquia, basta saber que, em Julho de 1157, sendo Gualdim Pais “mestre absoluto da Ordem do Templo” houve uma doação régia que a este mestre e à sua ordem se fez de oito moinhos na ribeira de Alviela, declarando-se que metade do seu rendimento seria para a Coroa. Nos fins do século XV, aos moinhos em Portugal, também se chamavam moinheiras e molinheiras. No tombo de Castro de Avelãs, de 1501, lê-se: “Parte pelo rio apróo à moinheira velha”. Nos forais das terras, era ao donos dos moinhos e não aos moleiros que se exigiam as pensões. (...) No Arquivo da Torre do Tombo há muitos documentos sobre moinhos. Num artigo publicado sobre o assunto pelo Dr. Sousa Vitebo no Arqueólogo Português, de 1896, se citam os seguintes: D. Afonso V, por sua carta de 18-V-1451, concedeu licença ao Infante D. Henrique para a construção de moinhos na alcáçoca de Santarém e em barcas sobre o Tejo. D. Afonso V fez outra concessão igual a D. Lopo de Almeida, seu conselheiro e vedor da Fazenda.

PRODUÇÃO

A finalidade de qualquer moinho de vento é a produção de farinhas que sirvam para a alimentação, tanto humana como animal. Para este fim utiliza-se como matérias-primas os cereais, cujas sementes amiláceas são reduzidas a um pó, mais ou menos fino, através da fricção entre dois corpos duros - as mós.

Limpo o cereal, era colocado num recipiente de madeira, o tegão, de onde caía por uma calha para o buraco central das mós, o olho da mó, sendo triturado pela rotação da mó corredoura sobre a mó de poiso.

O produto obtido era uma farinha com farelo (rama) que, habitualmente, era peneirada já na própria casa dos clientes.

Os produtos obtidos eram distribuídos aos clientes uma ou duas vezes por semana. A distribuição era feita até aos anos setenta em carroça puxada por um muar. Alguns clientes vinham também buscar a produção ao moinho, sendo o pagamento muitas vezes efectuado por troca directa: maquia de cereal versus produto obtido.

O moinho tradicional, sendo uma construção de planta circular, tem uma área interna diminuta, o que origina problemas de escassez do espaço disponível, especialmente no primeiro piso, que alberga a fabricação mas também o armazenamento de ferramentas de trabalho.

Na escassez espacial mencionada, é natural a correspondência a um trabalho do tipo individual. Efectivamente, o moleiro conjugava na sua pessoa os papéis de proprietário, ou muito raramente, rendeiro, produtor, moleiro, artífice e intermediário. Trabalho exclusivo do sexo masculino, competia ao moleiro iniciar os filhos no ofício da moagem. Já à mulher era relegado um papel secundário, nesta conjuntura doméstica, funcionando como ajudante esporádica.

Regulados os horários pela oportunidade e velocidade do vento, o trabalho iniciava-se geralmente pelas quatro ou cinco horas da tarde e prolongava-se durante a noite até à manhã do dia seguinte, o que obrigava a que o moleiro dormisse dentro do moinho sempre que este estivesse em funcionamento.

PROPOSTA DE MUSEALIZAÇÃO

Concluída esta breve investigação, é possível iniciar a elaboração de uma proposta de musealização daí decorrente. E se até agora orientámos a abordagem do objecto em estudo numa perspectiva de arquelogia industrial, já a musealização recorrerá aos conceitos e práticas da nova museologia.

Algumas perguntas se impõem à partida: musealizar porquê e para quê ? Musealizar como? Nesta justificação tentaremos responder às duas primeiras questões, enquanto o segundo ponto deste capítulo - Proposta de programa - se centrará no “como fazer”.

Já sabemos o que musealizar. Conhecemos o objecto através da investigação realizada. Inserimo-lo no contexto produtivo a que pertence - a moagem tradicional. Localizámo-lo na paisagem. Identificámos os seus vestígios vivos e mortos. Descrevemos as suas instalações activas, a sua arquitectura e a sua tecnologia. Estudámos a sua produção e debruçámo-nos sobre o trabalho. Ou seja, em última instância, para além da matéria inerte, interessam-nos os homens que a construíram, operaram e viveram nestas estruturas sobreviventes de um tempo que não é já o nosso.

Conhecidos e investigados os moinhos de vento, para quê musealizar? Com que objectivos? A resposta seria, no campo da museologia tradicional, aparentemente simples: musealizar é conservar e expôr colecções, recorrendo a disciplinas científicas, com objectivos de aprofundamento do conhecimento, de educação, de divertimento e de recreação.

No caso dos nossos moinhos de vento poderíamos responder às questões colocadas com um programa que pusesse em prática os objectivos que acabamos de enumerar. No entanto, o problema parece revestir-se de maior complexidade.

Retomando a pergunta inicial - porquê e para quê musealizar os moinhos de vento do concelho de Sardoal ? - Poderíamos ensaiar a seguinte resposta que não é só o despoletar de um conjunto de novas questões: só tem sentido a musealização dos moinhos de vento e azenhas, seja em que moldes for, se isso se tornar importante para a comunidade e constituir um ganho para a tomada de consciência da sua identidade e para a construção do seu desenvolvimento. Assim sendo, a intervenção museológica deverá constituir-se em intervenção participada onde as dimensões da comunidade e do ambiente inter-ajam, tendo como objectivo o desenvolvimento integrado das populações.

Deste modo, a investigação e a conservação, próprias tanto da museologia tradicional como da nova museologia, são fundamentais e devem ser postas em prática servindo, no entanto, objectivos que ultrapassam a educação e o divertimento - se bem que estes sejam totalmente legítimos e possam coexistir metodologicamente com os restantes.

No que respeita ao nosso caso concreto a justificação para a musealização dos moinhos de vento e azenhas deverá assentar no seguinte:

As mudanças havidas nas últimas décadas no concelho de Sardoal foram enormes, no que se refere a alterações de ordem demográfica, económica, ambiental, social e cultural. Comunidades houve que em curtos espaços de tempo deram o salto de sociedades pré-industriais para industriais e mesmo pós-industriais. Vestígios do primeiro tipo de sociedades, os moinhos de vento e azenhas (enquanto objectos a conhecer e interpretar) podem ser um contributo para o auto-conhecimento das comunidades e para a reflexão sobre as mudanças do seu passado recente.

· Em tempo de coexistência de energias, e quando se fazem estudos e experimentações sobre a utilização da energia eólica, os moinhos de vento podem constituir fontes de conhecimento e de sensibilização face à utilização da energia no nosso mundo.

· Os moinhos constituem, ainda, postos de reflexão sobre o desenvolvimento local, nomeadamente na sua própria viabilização económica, a forma de resistir e de permanecerem estruturas vivas. Encarados sem falsos bucolismos nem anacrónicos saudosismos, os moinhos de vento musealizados podem constituir contributos, entre outros, para o prosseguimento de um desenvolvimento local assente em potencialidades técnicas, sociais, económicas e políticas, mas também culturais.

Apontadas as linhas orientadoras dos objectivos a ter em conta na musealização, importa definir os processos a seguir: como fazer.

A Câmara Municipal de Sardoal deve assumir-se neste processo do núcleo moinhos de vento e numa fase posterior de azenhas, como catalisador de vários interesses e o elemento dinamizador do processo. Neste interviriam, entre outros, os actuais proprietários e azenhas ou das estruturas que deles restam, as respectivas famílias, as juntas de freguesia e colectividades locais, as Escolas do concelho e ainda alguns elementos da população com especial interesse e/ou conhecimentos nesta área.

PROTEGER E CONSERVAR

O primeiro passo a dar para a concretização de objectivos face a um património a musealizar é garantir a sua protecção e salvaguarda.

Protegido, o património deve ser conservado. Hoje, cada vez mais, a palavra conservar perde uma parte do seu sentido estrito e tende a ser substituída por outras de orientação mais dinâmica, tais como salvaguardar e reutilizar. Ultrapassemos, no entanto, as questões de ordem semântica e usemos o termo conservação, sabendo que não o entendemos sem as necessárias componentes dinâmicas.

Aos moinhos de vento e azenhas, sendo estruturas produtivas cujo funcionamento implicava movimento e aonde estavam presentes as relações homem/objecto e homem/mecanismo, deve corresponder um tipo de conservação que, além das construções e da arquitectura, atenda também à tecnologia e aos mecanismos. É esta a primeira orientação que a conservação deve levar em conta.

A segunda prende-se com a questão - conservar o quê. Tornar-se-ia irreal propor a conservação de todos os vestígios de moinhos de vento existentes no concelho. Parece-nos que a atitude mais sensata será a realização de um levantamento de necessidades - a partir do inventário

precedente relativo a todas as estruturas existentes no terreno - que, de uma forma interdisciplinar, aponte as acções a desenvolver no sentido da conservação dos vestígios em melhor estado. Esta fase do processo implicará propostas de selecção e decisão posterior. Partindo da selecção de alguns casos propor-se-á a sua aquisição pela Câmara Municipal ou pela Junta de Freguesia da área em que se situam.

PROPOSTA DE PROGRAMA:

Protegidos e conservados os moinhos de vento e azenhas necessitam do estabelecimento de um programa com vista à sua divulgação, animação e reutilização. Só com este programa os moinhos e azenhas se transformam de património potencialmente musealizável em património museológico.

A proposta de programa que iremos apresentar corresponde a uma primeira fase de implantação do núcleo dos moinhos de vento de Entrevinhas. Uma programação global exigiria maiores disponibilidades temporais e o estabelecimento de planos e programas delimitados cronologicamente. Aqui, e dado o âmbito deste trabalho, parece-nos mais correcto apontar um programa que se pretende coerente e que constitua a fase de arranque e implantação. Desse programa constam três actividades diferentes, correspondendo a duas fases diversas:

Divulgação - edição de materiais gráficos

- realização de exposições temáticas

Animação e reutilização - elaboração de um roteiro no terreno

Se os dois primeiros programas apontados anteriormente são fundamentalmente acções indirectas, mediadoras da interpretação do património, já a elaboração de roteiro é uma acção directa sobre o próprio património. É aqui que os destinatários da acção se transformam em visitantes, utilizadores e operadores.

A elaboração do roteiro/moinhos de vento pode inserir-se, em nosso entender, em dois conjuntos diferentes de realidades. Pode integrar-se na realidade do património industrial do concelho e ter, deste modo, um tratamento temático que lhe privilegie o papel pré-industrial, ou inserir-se no contexto do património global do concelho, sofrendo um tratamento integrado no âmbito da história e património locais. Não lhe retirando o peso e a importância que lhe conferem a primeira hipótese, preferimos, no entanto, considerar o núcleo moinhos de vento de uma forma integrada dentro da realidade mais global e complexa que é a história e o prosseguimento do desenvolvimento local considerado no seu todo.

O roteiro moinhos de vento abrangerá, em princípio, dois tipos diferentes de destinatários:

-em visitas organizadas e, geralmente orientadas, um público escolar oriundo das escolas do concelho e de concelhos vizinhos que incluirá as visitas no âmbito dos programas escolares;

-em visitas organizadas, mas também informalmente através de passeios pedestres e de circuitos automóvel, um público mais vasto, oriundo tanto do concelho como exterior a ele que fará incluir o roteiro em programas de turismo cultural.

O roteiro moinhos de vento deverá corresponder às diferentes exigências dos públicos apontados e ser completado com outros roteiros temáticos ou corográficos relativos ao património local. De qualquer modo, o roteiro deverá dispor de :

-material informativo gráfico (folheto e brochura já mencionados);

-painéis informativos colocados junto às estruturas a visitar. Estes painéis de ar livre deverão conter uma pequena exposição documental que dê a informação sobre a paisagem, o local e a instalação em causa;

-painéis / quadros de orientação, também ao ar livre, que possam tanto nos casos dos circuitos em automóvel como dos passeios pedestres sem guia, constituir base para o conhecimento da paisagem e do património.

No caso da interpretação guiada dos moinhos de vento e azenhas deverão ser privilegiados os antigos moleiros e outros elementos da comunidade com conhecimentos sobre a matéria. Deverá, também, ser dada formação específica a guias de património cultural.

O roteiro poderá e deverá ser complementado, no caso das visitas escolares com ateliers e actividades didáticas, nomeadamente fichas de observação, desenho e construção de modelos, entre outras.

No nosso caso concreto o roteiro deverá ter em conta não só a visita e a interpretação dos moinhos mas também a paisagem envolventes destes e a paisagem que ladeia os acessos e estradas que a eles conduzem. Nesse sentido o roteiro moinhos de vento e azenhas pode constituir-se quase num roteiro da paisagem rural do concelho de Sardoal. Espera-se, assim, incentivar um tipo de turismo alternativo que, optar por uma região rural, tenha fundamentalmente como objectivos a troca de informações e o convívio pluricultural, em desfavor da utilização pura e simples de equipamentos.