Principais Referências ao Sardoal nas Obras de Gil Vicente

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS AO SARDOAL NAS OBRAS DE GIL VICENTE:

TRAGICOMÉDIA PASTORIL DA SERRA DA ESTRELA

Nova edição, revista - por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Professor da Faculdade de Letras de Coimbra - Colecção Literária Atlântida - Coimbra 1963.

Tragicomédia pastoril feita e representada ao muito poderoso e católico Rei D. João, o terceiro deste nome em Portugal, ao parto da sereníssima e mui alta Rainha Dona Catarina Nossa Senhora e Nascimento da ilustríssima Infanta Dona Maria, que depois foi princesa de Castela, na cidade de Coimbra, na era do Senhor de 1527.

Vem dous foliões do Sardoal, um que se chama JORGE, outro LOPO, & diz a SERRA:

Sois vós de Castela, manos

ou lá debaixo do extremo ?

JORGE: Agora nos faria o demo

a nós outros Castelhanos ?

Queria antes ser lagarto,

Pelos santos Evangelhos!

SERRA: Donde sois ?

JORGE: Do Sardoal;

e (ou bebê-la, ou vertê-la !)

vimos cá desafiar

a toda a serra da Estrela

a cantar e a bailar.

RODRIGO: Soberba é isso perém

pois há ‘qui tantos pastores

e tão finos bailadores

que não medo a ninguém.

LOPO: Muitos ratinhos vão lá

de cá da serra a ganhar

e lá os vemos cantar

e a bailar com’ acá,

e é assi desta feição.

Canta LOPO e baila, arremedando os da Serra:

« E se ponerei la mano em vós

«garrido amor.

«Um amigo que eu havia

«mançanas d’ouro m’envia.

«Um amigo que eu amava,

«mançanas d’ouro me manda,

«garrido amor.»

«Mançanas d’ouro m’envia,

a milhor era partida.

Garrido amor.

Falado:

Isto é, ou bem ou mal,

assi como o vós fazeis.

SERRA: Peço-vo-lo que canteis

à guisa do Sardoal.

LOPO: Esse é outro carrascal;

esperai ora, e vereis.

Cantiga.

«Já não quer minha senhora

«que lhe fale em apartado.

«Ó que mal tão alongado!

«Minha senhora me disse

«que me quer falar um dia,

«agora por meu pecado,

«disse-me que não podia.

«Ó que mal tão alongado!

«Minha senhora me disse

«que me queria falar,

«agora por meu pecado,

«não me quer ver nem olhar,

«Ó que mal tão alongado!

«Agora, por meu pecado,

«disse-me que não podia;

«ir-m’-ei triste, polo mundo

«onde me levar a dita.

«Ó que mal tam alongado!»

Esta cantiga cantaram e bailaram de terreiro os foliões e acabada diz

FELIPA:

Não vos vádes vós assi;

leixai ora a gaita vir

e o nosso tamboril

e ireis mortos daqui

sem vos saberdes bolir !

CATERINA MEIGENGRA:

Entanto, por vida minha !

será bom que ordenemos

a nossa chacotazinha

e com ela nos iremos

ver el-Rei e a Rainha.

Ordenaram-se todos estes pastores em chacota como lá se costuma; porém a cantiga dela foi cantada de canto d’órgão e a letra é a seguinte:

«Não me firais, madre,

«que eu direi a verdade.

«Madre, um escudeiro

«da nossa Rainha

«falou-me d’amores;

«vereis que dezia:

«(Eu direi a verdade !)

«Falou-me d’amores,

«vereis que dezia:

«Quem te me tivesse

«desnuda, em camisa !»

«(Eu direi a verdade !)»

E com esta chacota se sairam, e assi se acabou.

Sois vós de Castela, manos? Como já notou o Professor Amorim Girão (Biblos, XII, 492 - 493), estes versos têm grande importância etnográfica . «É bem significativa a distinção etnográfica estabelecida pelo poeta entre a região da serra da Estrela e a do Sardoal, através da especial maneira de cantar e de bailar dos seus habitantes. E a resposta que um dos foliões dá a quem os tomou por Castelhanos, revelando o seu elevado sentimento patriótico, constitui uma especial característica antropogeográfica das populações raianas nesta zona portuguesa de entre Douro e Tejo.”

E (ou bebê-la, ou vertê-la!) Supõe-se que o sentido desta frase, pronunciada por JORGE, a modo de desafio, corresponde a frases modernas deste tipo : ou vencer, ou morrer! Ou ganhar, ou perder! Etc. Carolina M. De Vasconcelos, na sua edição das Poesias de Sá de Miranda, em nota ( a p. 858) do v. 95 do Epitalâmio Pastoril, informa: «Bevella o vertella, locução proverbial, que significa fazer alguma coisa em bem ou mal, com vontade ou sem vontade». E remete para o passo de Gil Vicente, acima citado. Segundo informação da Senhora Drª Augusta Faria Gersão Ventura a expressão vem também na Ulyssipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos (f. 106 v., da 2ª impressão: «De maneira senhor, que nesta cousa não ha senão bebella ou vertella ?»

E se ponerei la mano em vós, etc. A 1ª forma do futuro do verbo põer, na linguagem arcaica, é porrei; em castelhano, porné (yo los porné ante vos, diz a Morte da Barca da Glória), hoje pondré. Resta, portanto, justificar formas como ponerey, mano, mançana (que lembra avelana, louçana, manhana...). Constitui problema interessante, o de saber que linguagem era a que empregavam os vilãos da Serra nas suas cantigas. Em cada uma delas a nota mais curiosa é-nos dada pela presença de uma forma verbal - volava, morirá, es, olvidaste, vayámos, que ou parece estranha na boca do povo, ou não corresponde à linguagem falada. Tratar-se-á de simples castelhanismos, ou antes de vestígios duma comunidade dialectal, conservados, por causa da melodia, em certos cantares das províncias mais afastadas dos centros de cultura, e que Gil Vicente se esforçou por reproduzir? O Professores. Leite de Vasconcelos, estudando na sua Esquisse (pp. 151 a 153) o falar de Barrancos, concelho do Alentejo, encravado na Estremadura espanhola, assunto que retomou em 1939 (Bol. De Filologia, t. VI), deu conta da linguagem especial dos seus habitantes, devida a influências do povo vizinho. Se seguíssemos critério idêntico na apreciação da linguagem das cantigas do Auto, teríamos de admitir que Gil Vicente se entreteve a imitar a linguagem popular de qualquer povoação raiana, do que não temos, aliás, a mínima prova.

O JUIZ DA BEIRA

Esta farsa tem o seguinte argumento: diz o autor que este Pêro Marques, como foi casado com Inês Pereira, se foram morar onde ele tinha sua fazenda, que era lá na Beira, onde o fizeram juiz. E porque dava algumas sentenças disformes por ser homem simples, foi chamado à corte e mandaram-lhe que fizesse uma audiência diante de El-Rei.

Foi representada ao mui nobre e cristianíssimo rei D. João, o terceiro em Portugal deste nome, em Almeirim, na era do Senhor de 1525.

Bailador Juiz: ele o merece menos;

eu bailei em Santarém

Sendo os infantes pequenos.

E bailei no Sardoal,

e de contino me vem

bailar sem haver alguém

que me ganhe em Portugal.

Ora olhai esta maneira

para bailar com mulher:

e sabeis como se quer?

Sempre a volta assi ligeira.

Os Infantes são os filhos de D. Manuel. O Bailador tomou parte em qualquer festa com danças populares, em honra dos infantes.

Segundo Carolina Micaellis, o Sardoal era terra famosa pelos seus bailadores. Era a capital do fandango?