Ruas Velhas

Ao percorrer o Centro Histórico da Vila de Sardoal e as ruas a que os Sardoalenses chamam, carinhosamente, “Ruas Velhas”, sente-se a força telúrica e a força anímica, os dois estímulos que fixam os habitantes do Sardoal à sua terra, contrariando a emigração e a diáspora da sua gente, que resulta da conjunção e correlação recíprocas destes dois factores: natureza / homem – homem / natureza, que determinam o seu forte apego à terra e constituem a consciência da sua identidade étnica, de tradições e cultura que os Sardoalenses transportam na essência dos seu ser.

Vamos andando, descendo como quem sobe, devagar mas de pernas soltas, um pé atento às pulsações do presente, o outro a tactear as brumas do passado.

Verdade, verdadinha, as Rua Velhas, assim apertadinhas entre casario mais ou menos avelhentado, coisas que ficaram do burgo medievo, não deixam de ser uma congosta admirável. Nem tristonha nem suja, têm a estreiteza que têm, mas uma estreiteza bem à medida das liteiras avoengas e das velhas carroças de alquiler.

O empedrado das ruas, o enfloramento de uma janela, uns resquícios de ruralidade, tudo isso faz com que estas ruas sejam ruas transparentes. Têm luz própria, têm carácter e têm substância. Mas não têm o barómetro das montras aburguesadas.

E daí que a Vila Nova lhes passe ao lado e as olhe de viés. E que dê de barato e faça bom reparo naquelas mazelas que, a contragosto se debruçam de algumas casas em ruínas.

Mas as Ruas Velhas, elas próprias, são hoje em dia umas ruas escaroladas. Meio proletárias, são também uma realidade urbana. Não têm sombras apodrecidas, salvo seja, e até a Vila Velha, a mais antiga, está ali concentrada, com os seus cenários, o seu leve bulício, as suas regras constantes, enfim, um quotidiano que parece imutável.

Estas ruas têm séculos de história, mas são um espaço tranquilo onde se revive o passado do velho burgo que deu origem ao Sardoal.

Cada rua é um pedaço da alma desta terra e conta histórias sobre a sua gente. As pedras, as fachadas, as fontes, as soleiras e os batentes das portas, são marcas de um tempo. Os rostos das pessoas trazem consigo memórias de gerações e gerações que ali viveram e guardam uma herança cultural e social que forma o espírito dos lugares.

As Ruas Velhas são um reencontro com a alma e as raízes do Sardoal. Vale a pena percorrê-las calmamente.

Nestas Ruas em que o pavimento em calçada de seixos roliços do rio tem cambiantes decorativas interessantes, os pés sofrem com o acidentado relevo do piso irregular.

Ruas Velhas: da Amargura, da Amoreira, do Paço, do Chafariz, da Misericórdia, do Poço dos Açougues ou do Poço da Ratinha, onde se guardam memórias de tempos idos e até ao século XVI, constituíam o núcleo urbano do Sardoal antigo, que, depois, o natural crescimento estendeu para norte. Também aqui, fruto dos Descobrimentos Portugueses, pois é dado adquirido com segurança que muitos Sardoalenses embarcaram nas naus da índia e do Brasil, companheiros de Gama e de Cabral, combatentes com D. Francisco de Almeida ou Albuquerque e aventureiros com Fernão Mendes Pinto, até às longínquas paragens da China ou do Japão.

Percorrer o Sardoal medieval é uma viagem sem tempo e sem roteiro e onde não vale a pena ter pressa. Em busca das gentes, da memórias, das pontes e das fontes. Da ponte de S. Francisco à Ponte de S. Sebastião e do Chafariz das Três Bicas à Fonte da Pena ou da Penha, passando pela Finte Férrea. Do Paço à Cadeia Velha, até à Fonte Velha e ao Sobreiro de D. Maria.

Na Primavera desabrocham flores por todo o lado. Das janelas, muros, sacadas e recantos e a Rua da Amoreira, desde o Bugalhinho ao Poço dos Açougues, é um canal perfumado, poderoso desodorizante colectivo, feito de essências milenares, em que as flores dignificam os recantos e ruelas estreitas, a que a calçada continua a dar um cunho genuíno e característico.

Regresse depois ao Pelourinho. Procure a Capela de Nossa Senhora do Carmo, a Casa dos Arcos. Siga por Santa Catarina e por Sant’Ana (protectora das grávidas) e subindo depois, com a guarda de honra dos freixos que uma velhinha chamada tradição me disse terem sido trazidos da Índia por Sardoalenses que integravam a esquadra de Vasco da Gama, na sua segunda viagem à Índia...

Até ao Convento de Santa Maria da Caridade.

Suba lentamente a Escadaria do Convento e lá do alto não resista à tentação de observar a paisagem envolvente que daqui se pode ver, quer da Vila, quer de toda a zona que se estende até Abrantes, que nos encobre horizontes mais vastos...

Sobre o Património Cultural e sobre as flores da Vila Jardim, apenas duas breves citações:

“O Sardoal, a pequena Vila vizinha (de Abrantes), onde o gótico e i renascentista se enlaçam num abraço de despedida e de boas vindas e se vestem já das luminosas graças italianas, afeiçoadas às atmosferas portuguesas.”

Manuela Azevedo – “Diário de Notícias” – 05/08/1971

“Quis o acaso que se nos deparasse em comprida viagem por terras estremenhas, uma novidade e uma surpresa que não devem passar sem um comentário de louvor. Essa surpresa deu-no-la o Sardoal, vila ridente, fresca e cheirosa como um ramalhete de goivos, aninhada num cômoro que lhe serve de alegrete.(...)

As casas do Sardoal desentranham-se em flores. Há um jardim em cada janela, um alegrete em cada recanto. Velhos e modernos azulejos ajudam a compor os cenários floridos, a enquadrar as fontes, a animar as fachadas.

Ama-se, verdadeiramente, a flor nesta vilazinha estremenha(...)

Gustavo de Matos Sequeira – “O SÉCULO” – 05/06/1939