Lendas
Lenda da Fonte Velha
Para quem não conheça a Fonte Velha, direi que esta fica no limite da Zona Histórica da Vila de Sardoal, quase a meio caminho entre as últimas casas do Sardoal e o Sobreiro de D. Maria, uma árvore notável, classificada e protegida por Lei, logo no início da antiga estrada que ligava o Sardoal a Abrantes e que dali seguia pelas Carretas, parando perto do Telheiro, em direcção à Zambujeira.
É uma fonte de mergulho, muito antiga, talvez a mais antiga do Sardoal, que já em 1543 era chamada FONTE VELHA. Refiro, também, que a chamada FONTE NOVA, situada mais à frente, no caminho das Madalenas, terá sido construída por volta de 1460.
Não é utilizada, há muitos anos, para consumo público, mas pelo desgaste provocado pelos cântaros no seu parapeito (mais de 10 cm) pode-se imaginar a sua grande utilização pelos habitantes da Vila, em tempos recuados.
Diz a lenda que no fundo da fonte existiam duas lajes, cada uma com uma argola de ferro que permitia levantá-las e que quando a água estava límpida e sem lodo, se podiam ver.
Essas lajes tapavam dois compartimentos onde estavam metidos dois cofres. Um guardava ouro e o outro guardava a peste, sem que se soubesse sem os abrir, o que cada um guardava. Porque isto se passava no tempo em que a peste era a doença mais temida pelo povo e em que sempre que grassava a peste morriam muitas pessoas, nunca ninguém teve coragem para levantar as lajes e abrir os cofres.
Mas um dia, diz a lenda, um rapaz pobre do Sardoal apaixonou-se por uma rapariga muito bonita, filha de pais muito ricos que não permitiam o seu casamento com alguém que não tivesse, dinheiro e fazendas, à altura da sua fortuna.
Sabendo do ouro que estava guardado na Fonte Velha, numa noite de Verão em que estava quase seca, o rapaz desceu ao fundo da fonte e destapou a laje onde se guardava a peste e abrindo o cofre viu que estava vazio. Logo depois tira a laje do outro compartimento e tira o cofre do ouro que traz consigo.
A lenda não nos diz se ele casou ou não com a rapariga de que gostava. O que nos diz é que a partir desse dia, o Sardoal que até aí sempre vivera sem a peste e em que todos os habitantes eram amigos e viviam felizes, passou a ser um inferno de doenças, zangas e zaragatas.
Quando o povo soube que o tal rapaz tinha tirado o cofre do ouro da Fonte Velha, obrigou-o, pela força, a pôr lá o tesouro de novo, voltando a colocar a laje no seu sítio, e a paz voltou ao Sardoal, não voltando a haver peste.
É que a água era a principal riqueza que havia e há na Fonte Velha, essencial para a vida de todos e a pior peste é a ambição desmedida, a inveja, a avareza e a discórdia.
As lajes da Fonte Velha, diz a lenda, ainda lá estão, esperando-se que não voltem a ser mexidas.
Lenda de Nossa Senhora dos Barbilongos,
Depois Nossa Senhora da Saúde
(Andreus)
São poucas as referências que se conhecem sobre a aldeia dos Andreus. Uma das mais antigas vem na “Corografia Portuguesa”, escrita pelo Padre Carvalho da Costa, publicada em 1712, que se refere a Andreus como sendo “três aldeias com uma ermida de S. Guilherme”.
A Andreus se refere também Jacinto Serrão da Mota, nas suas “Memórias Restauradas do Antigo Lugar e Villa do Sardoal”, trabalho manuscrito existente na Câmara Municipal de Sardoal, coligido entre 1754 e 1762, na forma seguinte: “...Nos Andreus a ermida de S Guilherme e a antiquíssima Nossa Senhora dos Barbilongos, assim era chamada pelo século de 500 e hoje com a invocação de Nossa Senhora da Saúde” e em nota de rodapé refere ainda o seguinte:
“Esta invocação nasceu no ano da peste por se mandarem para ali os feridos dela a curar em barracas que para isso se fizeram. Ali era o lugar da cura e se chamou da Saúde. Foi no ano de 1580, aproximadamente, da peste neste Reino e do dito a esta parte teve princípio a invocação de Nossa Senhora da Saúde, chamada antes a Senhora dos Barbilongos, aludindo a uns monges de grandes barbas que ali viveram.”
Da Capela dos Barbilongos restam hoje apenas algumas ruínas. O povo de Andreus transferiu a imagem da Senhora da Saúde para a Igreja da aldeia e S.Guilherme foi sendo esquecido como padroeiro que foi das três aldeias que constituíram a vintena de Andreus e com o tempo se transformaram numa só.
Ouvi, há muitos anos, à Senhora Luísa Falcão, já falecida, uma lenda sobre a Senhora dos Barbilongos, depois Senhora da Saúde, que já não consigo reproduzir fielmente (talvez algumas pessoas mais idosas de Andreus a saibam contar), mas de que recordo, mais ou menos, o seguinte:
Diz a lenda que há muitos anos houve uma grande peste, que atingiu muitos moradores da aldeia de Andreus e de que muitos morreram.
No desespero da doença que era muito contagiosa, muitos dos doentes procuraram a protecção da Senhora dos Barbilongos, que ficava do outro lado da Ribeira do Vale Carvalho, num monte que fica à direita da estrada, como quem vai para Carvalhal.
Diz, também, a lenda que todos os doentes que conseguiram passar a ribeira se salvaram e que todos os que ficaram deste lado morreram. Daí que passassem a chamar à Senhora dos Barbilongos a Senhora da Saúde, cuja imagem trouxeram depois, para a Capela da Aldeia.
No entanto, a Senhora ou porque gostasse mais do lugar de onde viera ou porque quisesse um lugar de maior destaque na sua nova morada, diz a lenda que muitas vezes fugiu para a Capela dos Barbilongos, indo sempre os moradores buscá-la, com veneração. Mas depois que de todo se lhe acabou e aparelhou o lugar em que pudesse ser venerada, depois de rogada com muito afecto e devoção, o aceitou, pelo que o povo lhe ofereceu uma coroa de prata e um manto que ainda hoje usa.
É o que me lembro da lenda que me contaram e mais não posso contar.
LENDAS DO CABRIL e do lugar da Presa
(ALCARAVELA)
Transcreve-se aqui um trabalho elaborado no âmbito da Ocupação dos Tempos Livres, pela Fátima, Paula e Lurdes, publicado no Boletim “ALCARAVELA - UMA VOZ”, nº 2, de Setembro de 1986:
“Os Mouros, segundo nos disseram, viveram no Cabril, lugar que teve o nome de Penedo da Moura. Dizem que viviam lá, mas ninguém os via. Quando vinham à povoação, às compras ninguém os via. As pessoas que viviam no povoado iam lá levar a estopa para fiar e deixavam o dinheiro e no outro dia iam buscar a estopa que já estava fiada, pois os Mouros a fiavam de noite.
Diz-se que os Mouros deviam fazer uma grande ponte maciça. Esta ponte só podia ser feita de noite. Eram as Mouras que levavam as pedras à cabeça e só o podiam fazer de noite.
A ponte deveria ser feita do Penedo da Moura ao outro Penedo, mas como a ponte era maciça (entenda-se, sem espaço para o escoamento das águas) as águas formariam uma grande represa que iria invadir toda a povoação.
Ao ver que aquilo ia ser uma grande catástrofe, então Nossa Senhora veio um dia falar com os Mouros. Nossa Senhora parou a meio da Serra onde deixou o seu burrinho. Deu-se o nome de Sapatinha da Burrinha ao sítio onde o burrinho esteve parado, porque naquele sítio ficou gravada numa pedra a sapatinha do burrinho. Nossa Senhora veio dizer aos Mouros que eles não podiam fazer a ponte pois iriam destruir todas as terras das redondezas, devido à grande represa que ali se formava. Deu-se o nome de Presa à Aldeia que se situava mais perto, devido a essa mesma represa.
Na ribeira, junto aos lavadouros existe uma pedra que segundo dizem foi uma Moura que a deixou cair. A Moura levava a pedra à cabeça, levava um menino ao colo e ia a fiar.
No Penedo da Moura há uma saia encantada, que segundo dizem já tem muitos buracos, pois passam lá muitas pessoas e muito gado. Quem sonhasse três noites com a saia podia ir lá buscá-la e ou trazia a saia ou morria, pois estava lá uma serpente a proteger a saia e matava as pessoas que lá fossem buscá-la.
No sítio onde estava a saia, de noite via-se uma luz, mas a luz ia desaparecendo à medida que as pessoas se iam aproximando.”
Esta lenda recolhida por jovens, parece incluir várias lendas.
O Dr. Augusto Serras, no seu livro “ALCARAVELA - Memórias de um Povo”, apresenta algumas lendas do Cabril que, de certa forma, contam de forma mais desenvolvida e com outro tratamento literário, a lenda que atrás se transcreveu. Transcrevo, com a devida vénia, essas lendas:
“Preâmbulo
São as lendas uma forma de cultura dos povos que as conservam. Como já disse, o grande contador das lendas do Cabril, para mim foi o velho Joaquim Vital, debaixo do alpendre da casa dos meus pais. Dos vários contadores de então, nenhum o igualava na graça e vivacidade e quase autenticidade que lhes transmitia.
Nas minhas actuais pesquisas as lendas são uma baralhada sem graça, sem interesse. Hoje há televisão aos serões e não há contistas de histórias a contá-las aos netos. Até a bela lenda da Senhora e do Burrinho está adulterada com acréscimos apócrifos e comflagrantes cronológicos.
Seria bom recompor estas histórias fantásticas, inventadas pela imaginação popular, no decurso dos séculos, até se fixarem numa forma tradicional, hoje quase perdida. É o que pretendo fazer.
Começo pelas lendas dos mouros e, por fim, a da pegada do burrinho da Senhora, que nada tem a ver com os mouros.
Os Mouros quem eram?
Os Mouros
É o Cabril um desfiladeiro, estreito e profundo, que corta a espinha dorsal da Serra da Alcaravela, em frente ao lugar da Presa. A medula da serra é rochosa e parte desses rochedos estão à vista. É nestes penhascos que o povo imaginou a morada dos mouros, um tanto infantilmente, como se eles vivessem em covas ou buracos, como as cobras e os lagartos.
Mas será que alguma vez os mouros se instalaram no Cabril?
Não. Não só lá não aparecem vestígios da sua presença, como todas essas lendas estão de tal forma recheadas de fantasia inverosímil, que não dá para extrair delas qualquer pontinha de historicidade mourisca.
No ano de 622, vivia no deserto da Arábia, um povo de pastores, inculto, supersticioso, atrasado. Nesse ano, Maomé, o profeta, após um mês de meditação no deserto, deu-lhes uma bíblia, o Alcorão, onde estão as leis e a moral impostas pelo seu Deus, Alá. Foi o rastilho que veio dinamizar esse povo. Os Árabes dedicaram-se, então, ao estudo e Guerra Santa pela fé de Alá. Fundaram um grande reino. Hoje são uma raça forte e numerosa.
Os Mouros ou Árabes estiveram em Portugal durante séculos. Conquistaram a Península aos Visigodos, no ano de 711, na batalha de Guadalete. Os cristãos chamavam-lhes mouros por não serem batizados.
Depois de expulsos do território, o povo mitificou-os em lendas, atribuindo-lhes derrotas em batalhas de historicidade duvidosa e poderes que nunca tiveram. Os cristãos, no decorrer dos tempos, criaram histórias fantásticas sobre essa gente das terras das Mil e Uma Noites.
Sempre que surgiram ruínas, fortalezas abandonadas, rochedos tamanhudos com antros e cavernas, logo o povo imaginava mouros, tesouros, mouras encantadas, enguiços, desencantos, serpentes vigilantes. Tudo fantasia. Este fenómeno ocorreu por todo o País.
A PEDRA DA MOURA
Para Joaquim Vital a Pedra da Moura é a que está na encosta, no lado da Chã do Mouco e não a que está na ribeira, caso contrário a lenda perderia sentido.
Em tempos remotos os sarracenos do Cabril e os cristãos da charneca andavam desentendidos por rivalidades entre as suas religiões, de tal forma que alguns mouros mais radicais propunham que se erguesse uma ponte que ligasse os cimos do desfiladeiro e fizesse barragem que inundasse a charneca e acabasse com a maldita raça dos cristãos.
Essa obra teria de ser feita numa noite sem luar e sem os cristãos darem por isso, para não tentarem impedir a sua construção.
Para outros mais conciliadores, tal empreendimento seria demasiado alto e perigoso; preferiam antes uma ponte que desse para atravessar a ribeira em dias de invernia.
O impasse prolongava-se.
Segundo as lendas, os mouros moravam em galerias subterrâneas cavadas nas encostas do vale, onde havia salas, salões, prisões para encantamentos, quartos, residências.
O chefe convocou a mourama para uma assembleia, num desses salões, com o fim de se tomar uma decisão quanto à ponte. Após discussões intermináveis, ele apresentou uma proposta que não favorecia mais uma que outra das partes.
Sugeriu que a ponte fosse feita a meio da encosta e a moção foi aprovada com aplausos.
Nessa altura uma moura ainda jovem, levanta-se e oferece-se para levar, ela só, a primeira pedra para início da ponte. O chefe mouro, julgando que a proposta da moura era um disfarce, respondeu irónico:
-Só se for a pedra grande que está no alto do Picoto...
-Pois amanhã lá estará - disse a jovem desconhecida.
Uma gargalhada geral rematou este disparate. Ninguém lhe ligou mais.
A noite fechou-se. No dia seguinte, quando os sarracenos saíram das suas cavernas, ficaram boquiabertos de espanto. O grande rochedo lá estava na outra encosta. Juntou-se a mourama em redor desse enorme bloco e todos se interrogaram como tinha sido e quem a colocou naquele lugar. De longe os cristãos já espreitavam desconfiados.
Apresenta-se de novo a jovem moura, agora mais linda, ricamente vestida, com uma coroa na cabeça, mas de olhar triste e ao lado um jovem esbelto, com turbante de seda e um diadema no alto da testa, com uma meia lua dourada. Diz ela:
-Eu a transportei, para cumprir o meu fado.
E o jovem confirmou:
-Ela a trouxe à cabeça, com uma criança ao colo e na mão uma roca; na outra mão um fuso a fiar um velo de ouro. No escuro da noite eu lhe alumiei os passos com um facho, para não tropeçar. Do velo de ouro teceu uma saia que ficará guardada na serra; o resto do novelo foi deixado debaixo da pedra, para testemunhar este facto. Podeis procurá-la se tiverdes ânimo para a remover. A saia ficará até que um dia um inimigo de Alá a encontre e consiga desencantar esta linda princesa, por quem estou apaixonado e sobre a qual pesa um terrível fado de ficar presa nas entranhas da terra, por ter discordado da guerra santa contra esses malditos cristãos. Agora pertence-vos concluir a ponte na noite que vem. -E no mesmo instante envolveu-os uma névoa densa e ninguém mais os viu.
Os mouros ficaram baralhados e, ao aperceberem-se que estavam a ser espiados pelos cristãos, nunca mais pensaram na ponte, que só lhes acarretaria complicações.
E a Pedra da Moura lá ficou para sempre a testemunhar o início de uma obra nunca mais acabada.
O CÓS DA SAIA DE OURO
O convívio entre cristãos e mouros tinha altos e baixos; ora se davam as mãos ese ajudavam mutuamente, ora armavam escaramuças de se matarem, sempre por diferenças religiosas.
Durante os contactos em que se toleravam, os cristãos ficaram a saber por eles, da existência da saia de ouro, não longe da Pedra da Moura, cujo cós já estaria muito gasto, de tanto gado lhe ter passado por cima.
Expulsos os mouros, no século XIII, para as suas terras, os cristãos ficaram a saber o que deviam fazer para se apoderarem da saia. A pessoa que a quiser obter, depois de encontrar o cós, terá de cavar fundo e, quando quiser levantá-la, abre-se a bocarra de uma galeria e logo aparece, ameaçadora, uma serpente medonha, com os dentes venenosos afiados para os cravar e matar o intruso. Este terá de ir munido de um objecto cortante e, logo que a bicha abra a boca tem de ser lesto e cortar-lhe a língua, até fazer sangue. Se o não conseguir, ele morrerá e o seu corpo será arrastado para a caverna a juntar-se aos muitos infelizes que já foram mal sucedidos, e logo a serpente colocará tudo como dantes.
Mas se conseguir cortar-lhe a língua, a bicha morrerá. Para se apoderar da saia a pessoa tem de entrar na galeria, passar por cima dos cadáveres de quantos lá ficaram, no decorrer dos tempos, continuar em frente, agarrar uma chave de brilhantes que está pendente do tecto e com ela abrir uma porta gradeada que mantém encerrada a linda moura encantada, princesa do Oriente, a que transportou a Pedra da Moura. Entra e verá a princesa, sentada num trono, adormecida.
Ali nada lhe faz falta a não ser a liberdade e a luz do sol.
Deve aproximar-se e dar-lhe um beijo na testa coroada. Ela acordará e retribuir-lhe-á com outro beijo também na fronte e ficará para sempre livre para se encontrar com o seu príncipe que a espera algures no país das Mil e Uma Noites. No regresso o libertador tomará posse da valiosa saia de ouro.
A RECOMPENSA DO MOURO
Aconteceu que, numa das ocasiões em que cristãos e mouros andavam de candeias às avessas, uma moura estava para dar à luz e, entre as sarracenas do Cabril, nenhuma tinha conhecimentos para assistir a esses trabalhos. Então o marido recorreu, discretamente, pela noite, a uma famosa parteira que havia no lugar da Presa. Ela recusava por vários motivos, dada a hostilidade entre as duas raças.
O mouro prometeu uma fabulosa recompensa, mas na condição de ela guardar segredo para sempre, do pedido que lhe fazia e de ignorar, em toda a parte, a sua pessoa e a da sua família. Alta noite partiram ambos para o Cabril.
Feito o parto e antes de se retirar, a parteira marcou, discretamente, a criança com uma beliscadura no canto da vista direita, para a reconhecer, se um dia a encontrasse.
A mulher usava um bonito avental, de cor clara, com barras vermelhas. À despedida o mouro despejou-lhe para a abada do avental, uma razoável panela de carvão, como recompensa do trabalho prestado.
Caso esquisito! Carvão a sujar-lhe o avental!
Por vergonha e até por temer alguma reacção do mouro, não lançou fora, ali mesmo, aquele prémio do seu trabalho, mas sentiu-se lograda. Manhã cedo ela partiu, de regresso a casa, desesperada e, no percurso foi lançando para a margem do caminho, tição a tição, de modo que ao chegar a casa, levava já poucos carvões no avental. E só então reparou que os carvões restantes se tinham transformado em barras de ouro brilhante. Guardou-as na gaveta da costura e voltou atrás para recuperar os carvões deitados fora. Não encontrou nenhum. O mouro viera no seu encalço e tinha-os apanhado todos.
Anos depois a parteira foi à fonte do Cabril. Enquanto enchia a bilha de água viu num pego da ribeira duas criancinhas mouras a chapinhar na água. Pareceu à mulher ver um sinal junto à vista direita de uma delas. Aproximou-se dela para lhe falar, quando, de junto de uma faia surge rápido o mouro que a impede:
-Eu sabia, cristã maldita, que não ias cumprir a tua palavra, desde que vi o beliscão que fizeste no rosto da criança. Pois a partir de hoje não mais nos reconhecerás porque, para sempre te vai faltar a luz do sol. - E nesse instante soprou-lhe para os olhos um pó que trazia na mão fechada.
A parteira ainda regressou a casa por seu pé e à noite estava cega.
O LINHO FIADO
Havia outrora na encosta do Picoto, uma pedra larga, a lembrar o tampo de uma mesa. Quem lá fosse à tardinha colocar velos de linho para fiar, qualquer que fosse a quantidade e deixasse junto a importância devida em moeda corrente, podia ir lá buscá-lo na manhã seguinte, que as mouras fiavam-no durante a noite.
Esse linho tinha a propriedade de jamais apodrecer e de dar a felicidade aos noivos que, no dia do casamento, vestissem roupas desse fio. Por isso, à tardinha havia lá sempre linho.
Contudo se o dinheiro deixado não correspondesse à quantidade a fiar, no dia seguinte tudo estava como tinha ficado na véspera, ou se o dinheiro fosse em excesso, lá estava a demasia.
IR À LÃ E FICAR TOSQUIADO
Porém se alguém deixasse sobre a pedra qualquer objecto esquecido, logo que se afastasse cerca de cinco passos, tudo o que não fosse linho ou dinheiro, desaparecia num ápice, sem que ninguém visse como. Isto intrigava os visitantes que não conseguiam ver a agilidade das mouras.
Um certo rapagão, que julgava resolver tudo pela força, dispôs-se a ver como è que tudo desaparecia. Comunicou aos vizinhos e lá foi mostrar-lhes o seu destemor perante as manobras das mouras.
Chegados ao Cabril ele partiu encosta acima, tendo os mirones ficado junto à ribeira. Depositou na pedra uns velos de linho e ao lado deixou, como esquecido, um saco com um seixo dentro e dispôs-se a espreitar a tramóia. Para melhor poder observar tudo, afasta-se recuando pé ante pé, até à distância crítica. Ouviu então um rosnar forte e cavo, e logo surge do outro lado da pedra, a cabeça enorme, medonha, arrepiante, de uma serpente ameaçadora, a resfolgar como um vendaval.
Com um jacto potente do seu sopro sobre o saco, atira este, como uma bala, contra o valentão que tombou e rolou encosta abaixo, até parar no fundo da ribeira, sem conserto, perante o espanto dos curiosos que o esperavam.
Assim acabaram as prosápias de um valentão: foi à lã e ficou tosquiado.
A PEGADA DO BURRINHO
Das histórias do Cabril, a mais poética e deliciosa, e que nada tem a ver com os mouros, é a que nasceu da pegada do burrinho, que dizem estar gravada numa pedra, no alto da Chã do Mouco. Não é que fizesse fé em lendas, mas procurei, em novo, a pedra que deu origem a esta encantadora lenda. Nunca a encontrei, embora me garantissem que ela está lá no meio dos marouços de pedras ali espalhados.
Pois diziam os antigos que quando S. José regressava do Egipto, para onde tinha fugido das más intenções de Herodes, andou perdido por muitos caminhos, até que veio parar, já cansado, aos cimos da Serra de Alcaravela, com a Senhora e o Menino montados num burrinho, que ele trazia pela arreata.
Nesse tempo ainda o cantar dos corvos era harmonioso, agradável e a serra era calva e desnudada de arvoredo, só o coruto, por onde passava a Divina Comitiva, estava tapeteado de musgo macio.
Quando entraram na área da Alcaravela, a passarada da charneca foi toda em bandos ao seu encontro, a esvoaçar e chilrear coros de melodias, que acordaram o Menino suavemente. Ele sorriu e a Mãe agradeceu. Até os animais selvagens e brutos, lobos, ursos, javalis, gazelas, cabras monteses, raposas, bisontes, todos subiram dos seus esconderijos e pararam quedos e respeitosos à passagem da Criança que lhes acenava com a mãozinha.
A charneca saudou assim, carinhosamente, o Filho de Deus.
O cortejo caminhava sereno e festivo pela lomba da serra, até que, inesperadamente, depara com o precipício do vale do Cabril, fundo e perigoso. Estancaram. O burrinho também e com tal firmeza que uma ferradura ficou marcada numa laje do chão.
Um pouco de atrapalhação para a comitiva. Como atravessar aquele vale escarpado, com a Mãe e o Menino tão frágeis?
O corvo fora sempre pronto e gentil. Com a sua veste clerical, a sua voz, até esse dia melodiosa, incomparável, a competir sempre com os melhores solistas das catedrais, quando lhe dava para cantar zarzuelas ou trinados líricos, calava-se toda a charneca. Só que tinha também os seus fracos: gostava do alheio e de surripiar o que apanhava à mão. Era meio abusador. Mas não há bela sem senão.
Pois ele vai resolver o impasse da situação. Subiu a um marouço de pedras, ali ao lado, bateu as asas a impor silêncio e começou a entoar uma sonora Cantata ao Deus Menino. Fez-se silêncio total. Talvez o sublime daquela melodia tenha feito lembrar à Divina Criança, a voz harmoniosa dos anjos lá no céu. Em seguida fez sinal à passarada para que esperasse e desse largas aos seus gorgeios. Por fim levanta voo, dá três voltas em espiral ascendente e, lá no alto, afasta-se ligeiro até se perder de vista ao longe.
Entretanto a passarada abriu roda em volta da Sagrada Comitiva. Cada um faz a sua habilidade canora, do que resulta uma polifonia inédita e agradável. Só gaio é que às vezes desafinava. A águia marcava o compasso e os grous faziam de trombone.
São José, inquieto, olhava distante. Lá longe, dos lados da que iria ser mais tarde Santa Clara, avista-se no ar, algo que brilha a ouro e a cristal. Era o corvo que trazia, pendente do bico, uma colcha rica de ouro e brilhantes. O malandrote tinha feito mais uma das suas: roubara, em tempos, a uma patrícia romana, uma colcha de cama, que ele guardava escondida na toca de um sobreiro, na encosta da Cabaça.
Chegou. A passarada pasmava diante dos mil cadilhos da colcha que reflectiam o brilho do arco-íris. Pousou e, com a ajuda das outras aves, estendeu a colcha no terreiro e convida a Divina Comitiva a passar para a colcha com o burrinho. Então cada ave tomou no bico a ponta de um cadilho e a voar levantam a colcha estendida, com os sagrados peregrinos que assim vão transportando, suavemente, no espaço, por cima do vale, enquanto os animais não alados juntam as vozes numa vibrante saudação de adeus. O Menino, lá no alto, olhava-os com simpatia.
Chegados à outra banda pousam no cimo do Picoto. Os passageiros saiem da colcha, agradecem e dispõem-se a seguir caminho, mas o Menino fala ainda:
-Moradores da charneca, fostes muito simpáticos e tu, corvo, muito gentil. Obrigado a todos. Não vos esquecerei. Um dia virá uma gente boa povoar e trabalhar esta charneca que irá florir e dar pão a esse generoso povo. Mas tu, corvo, o sublime cantor da serra, vai entregar essa colcha à sua dona, que lha roubaste e não te pertence.
-Sim, mas...Gosto tanto dela... -respondeu o ladrão, como quem não está disposto a desfazer-se do seu tesouro.
Num adeus final S. José pega na arreata do burrinho e segue a marcha para Nazaré. A passarada, entre gorjeios variados, levanta voo para os seus ninhos. O corvo recolhe a colcha a pensar indeciso na recomendação inesperada do Menino. Mas ela é tão bonita! Não. A estas horas a dona já tem outra, não precisa desta. Toma-a no bico e levanta voo na direcção do esconderijo. Lá bem alto, arrependido já da boa acção que fizera em favor daquela gente, olha para o fundo do vale e vê, sentado num penhasco, um pastor a comer queijo. Cego pela gulodice desse manjar. larga a colcha ao vento e lança-se sobre o pastor. Só que este ao ver o corvo aproximar-se, guarda o queijo na sacola e ele nem o cheiro lhe aproveitou.
Voa rápido na vertical para recuperar a colcha, mas não a vê mais, que o vento a tinha levado pelos ares, a foi dobrando até a depositar na janela da fidalga romana.
O corvo impaciente procurou-a por todos os lados da serra e, já desesperado ia rogar uma praga àquela criança, mas a voz falhou-lhe. Reparou então que a sua voz era outra, voz rasgada, rouca, áspera, sem sonoridade, sem beleza, desagradável, ao contrário da maviosidade que tinha antes. Daí por diante os corvos passaram a grasnar como os abutres e nunca mais cantaram como antigamente.
Apesar de tudo continuou a procurá-la, ele, os seus filhos e netos, talvez na esperança de recuperarem um dia a voz perdida.
Dizia a minha avó Rita, quando ouvia crocitar os corvos na Serra de Alcaravela:
-Lá andam eles à procura da colcha da fidalga.
A TROMBA D’ÁGUA
Seguem dois episódios ligados ao Cabril, transmitidos pela tradição oral de outros tempos, com algum sabor lendário.
Certa noite a ribeira encheu desmesuradamente, muito acima das maiores cheias. As águas entraram de roldão no desfiladeiro. Um lagar e uma azenha foram arrastados na enxurrada com os lagareiros e o moleiro em serviço, como ainda a maior parte dos utensílios, alguns dos quais, como a caldeira, foram encontrados em lugares distantes.
Os corpos desaparecidos nunca foram encontrados.
Na véspera deste acontecimento, alguns viajantes passaram no Cabril, ao anoitecer e pediram pousada, mas o lagareiro, por ter visto os céus tão carregados, encaminhou-os para Santa Clara, e terá sido a sua sorte.
A tradição apurou duas causas possíveis para este acontecimento. Terá sido um tornado que desabou sobre a bacia hidrográfica de Alcaravela e que afluiu ao vazadouro do Cabril. Querem outros que as galerias dos mouros, agora desabitadas, se tenham enchido das águas das chuvas e tenham forçado as saídas e desabado sobre o vale - o que tem o seu cunho de lendário.
UM BISPO DESTERRADO, OUTRO FUGITIVO
Também me falaram de um bispo que esteve desterrado no Vale do Cabril, por qualquer atitude tomada no tempo das lutas liberais. Da sua morada há ou houve em tempos, o quinal de um portão.
Além do bispo do Cabril falavam também de outro no lugar da Lapa, ali perto.
Não serão bispos a mais?
Há entre eles a sua diferença. O bispo do Cabril cumpria uma pena e o da Lapa esteve escondido na gruta onde está, ou esteve, a imagem da Senhora que ali lhe apareceu. Nessa gruta se ocultou dos esbirros dos Filipes de Espanha, que o queriam julgar e condenar à forca, por ele ter seguido a causa de D. António, Prior do Crato, - o legítimo Rei de Portugal, face às pretensões de Filipe II de Espanha.
Contavam que uns amigos o tinham escondido perto do Sardoal, onde os esbirros espanhóis o procuraram a pente fino.
Uma noite a Senhora do Céu apareceu-lhe em sonhos e disse-lhe que se levantasse e fosse ao campo a casa de um camponês que tinha um burro e estava já prevenido para o receber; arrancassem as ferraduras à besta e as cravassem de novo com a frente da ferradura voltada para trás. Seguisse naquela noite para onde o animal o levasse e lá ficaria seguro, numa gruta abandonada. Todos os dias uma velhinha lhe iria levar uma tigela de comida. Ele assim fez.
No dia seguinte à fuga, os perseguidores, não o encontrando em qualquer casa da Vila, muito cedo começaram a procurá-lo nas casas do campo; ao cruzarem um caminho, notaram pegadas frescas de uma besta e seguiram-nas na direcção que elas apontavam.
E assim perderam de vista o bispo que queriam matar or ele desejar um Rei português para a sua pátria.
A Lapa foi, há setenta anos, um pequeno santuário muito procurado pelas freguesias das redondezas, em romagens de fé.
Na mesma obra, o Sr. Doutor Augusta Serras conta uma outra lenda, que não se relaciona com o Cabril:
A FIGUEIRA DOS FINADOS
Houve em tempos, neste vale, entre os Casos Novos e a Saramaga, uma horta com uma grande figueira de abundantes e saborosos figos, cujo dono era cioso dos seus frutos, e até um sovina pouco simpático.
Claro que os figos eram uma tentação para a rapaziada. De noite assaltavam-lhe a horta e papavam-lhe os figos.
Para dissuadir os intrusos, o homenzinho comprou um bacamarte de carregar pela boca e, de noite, ia à horta dar dois ou três tiros, para amedrontar os gulosos, como se espantam pardais.
Só que dois deles fizeram-lhe uma contra-proposta. Envolveu-se cada um em seu lençol e, numa noite de luar, caminharam lentamente, ribeira acima, em direcção à horta, afastados entre si, uns quantos passos.
Quando o primeiro entrava na horta, o que seguia atrás começou o seguinte diálogo, com voz macabra e compassada:
-Ó alma dianteira, sobe aquela figueira.
-Quando nós éramos vivos, - diz o da frente;
-Comíamos destes figos, -responde o de trás.
-Agora amortalhados,
-Comemos dos mais passados.
-E maldito seja o vivente,
-Que quiser matar os finados! - Concluiu o outro.
Ó pernas para que vos quero!
E, enquanto o primeiro trepava já à figueira, o dono dos figos corria, pálido, com os olhos esbugalhados, a caminho de casa.
Nem se apercebeu de que o bacamarte lhe caíra.
-Diabos levem o bacamarte!
Abre a porta de supetão:
Ó mulher! Ó mulher, nunca mais comas figos daquela figueira. É a figueira dos finados. Se tu visses o que eu vi! Não é a malta, não, são os mortos que nos levam os figos. Eles lá ficaram a comê-los...
E dessa noite em diante, enquanto houve figos na figueira, a malta jovem trepava-a, cantava serenatas e enchia a pança sobre a Figueira dos Finados.