Gil Vicente - Outras Notas

A Música no período Vicentino

Não se poderá dizer que a Música tenha adquirido no nosso País uma importância cultural de grande relevo. A arte dos sons parece, de uma maneira geral, ter solicitado menos os Portugueses do que as artes plásticas ou as artes literárias. A Música foi aqui naturalmente cultivada, e por vezes quiçá com certo brilho, na corte, em catedrais e mosteiros, mas a verdade é que no domínio da criação e à parte um que outro caso esporádico, os talentos rareiam e muito mais os génios. A nossa história musical não avulta em personalidades da craveira de um Gil Vicente ou um Camões, de um Grão Vasco ou de um Pousão, de um Machado de Castro ou de um Soares dos Reis.

Afora o período dos polifonistas dos séculos XVI e XVII, não tem havido na nossa música uma continuidade de esforços, uma unidade de propósitos que lhe dêem uma certa organicidade, uma fisionomia definida, o que poderia fazer que com alguma propriedade nos fosse lícito falar de uma Escola Portuguesa. Aliás, um dos piores males neste capítulo é o da escassez, para não dizer falta total, de documentação, ou nunca existente, ou desaparecida ou sumida em arquivos, o que constitui naturalmente um sério impedimento a que se possa fazer uma História da Música Portuguesa e só seja, por ora, possível uma História da Música em Portugal.

Pouco ou nada de positivo se sabe a respeito da Música entre nós nos primeiros tempos da nacionalidade. A cultura musical devia ser predominantemente eclesiástica, como sucedia em toda a Europa. Era a época dos primeiros voos da polifonia incipiente, introduzida na Península nos tempos de Santo Isidoro, bispo de Sevilha, e natural era que também aqui as primitivas formas do contraponto fossem cultivadas, existindo demais uma igreja metropolitana tão importante como a de Braga. O movimento trovadoresco, de tão notável alcance no desenvolvimento da música profana e que na Península deixou assinaláveis vestígios literários, teve também aqui representantes de mérito. Contudo, as produções musicais dos trovadores portugueses desapareceram inteiramente, não figurando nos Cancioneiros, mais do que a letra das poesias. A célebre Canção do Figueiral, que foi durante muito tempo atribuída ao trovador Goesto Ansures, do tempo de D. Sancho I, só nos é conhecida por uma versão do século XV, sendo a sua autenticidade duvidosa. O trovadorismo, essencialmente profano e lírico, foi rico de formas poético-musicais: aravias, serranilhas, loas, endeixas, xácaras, solaus, trovas, celeumas, janeiras, reis, etc. As canções dançadas também abundavam. Dentre elas têm especial importância a chacota e a folia, que a música instrumental posterior, até ao século XVIII, assimilou sob as formas de Chaconne e das Folies d’Espagne. Das formas dramático-musicais medievais há que destacar os autos ou mistérios, base do teatro erudito vicentino. O vilancico, que foi cultivado na nossa música, até ao século XVIII, é também de origem medieval e achava-se primitivamente ligado aos autos e mistérios, de onde se destacou depois, passando a constituir um género meio religioso meio profano, cantado nas igrejas, nos intervalos das matinas, até que, degenerando na licenciosidade, foi proibido por D. João V.

Nos séculos XV e XVI as notícias sobre a Música em Portugal começam a ser um pouco mais precisas. A arte dos sons parece ter florescido na corte de D. Afonso V, que empreendeu uma reforma da sua capela, para o que mandou colher elementos a Inglaterra, onde então dominava o ilustre João Dunstaple. A música atrai vultos notáveis como o Duque de Coimbra, D. Pedro, morto na Batalha de Alfarrobeira. Na música instrumental é a época dos guitarristas, que cultivam as glosas ou diferenças e de entre os quais se destacaram, além de D. Pedro, os seguintes: António da Silva, Pero Vaz, Egas Parlimpo, Afonso da Silva e, sobretudo, Peixoto da Pena, que gozou de grande reputação pelos seus fabulosos dotes de executante.

Também o chamado estilo vocal acompanhado do primeiro Renascimento teve aqui cultores de certa nomeada, pela sua maioria poetas, escritores e humanistas da corte de D. Manuel, cuja munificência se estendeu à música. Entre eles citam-se: Tristão da Silva (ainda do tempo de D. Afonso V), autor de uma colecção Los amables de la musica, de que não existe nenhum exemplar, os dois Garcia de Resende, D. João de Meneses, Manuel Machado de Azevedo e Damião de Góis, o amigo de Erasmo, músico notável de que restam três moletes, Surge prospera, Ne laeteris e In die tribulationis. No tempo de D. João III distinguiram-se ainda dentro deste género de música João de Badajoz e Gonçalo Baena. Uma figura de relevo deste período é D.Heliodoro de Paiva, cónego de Santa Cruz de Coimbra, homem enciclopédico e que à música consagrou muito do seu talento (compositor, organista, cantor, harpista e tocador de viola de arco). O estilo a cappella teve aqui notáveis representantes com os polifonistas das chamadas escolas de Évora e Vila Viçosa, que durante século e meio mantiveram, na Sé da primeira cidade e na capela ducal da segunda, uma brilhante tradição musical, que atrai músicos de várias partes do País e cujos efeitos se fizeram sentir um pouco por toda a parte. É longa a lista dos compositores deste período. Cumpre-nos notar aqui tão somente os que granjearam maior nomeada. São eles: Manuel Mendes, Duarte Lobo, que passa por ser o maior músico português, Frei Manuel Cardoso, Filipe de Magalhães, Afonso Lopbo, José Lourenço Rebelo, Diogo Dias de Melgaço, Frei Francisco de Santiago, Gabriel Dias, Frei Luís de Cristo e Marques Lésbio.

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A GASTRONOMIA NO PERÍODO VICENTINO

(ALGUMAS NOTAS)

UM BANQUETE REAL

Garcia de Resende descreve na Crónica de El-Rei D. João II os luzidos banquetes oferecidos aquando da celebração do casamento do príncipe D. Afonso com D. Isabel, filha dos Reis Católicos.

«E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas e sacabuxas, e de tôdolos ministréis era tamanho que se não ouviam, e isto se fazia cada vez que El-Rei, a Rainha, e a Princesa bebiam, e vinham as primeiras iguarias à mesa; e a copeira era coisa espantosa de ver.

E logo à entrada da mesa veio uma grande carreta dourada, e traziam-na dois grandes bois assados inteiros, com os cornos e mãos e pés dourados, e o carro vinha cheio de muitos carneiros assados inteiros com os cornos dourados (...)

«E assim vieram juntamente a tôdalas mesas muitos pavões assados com os rabos inteiros, e os pescoços e cabeça com toda a sua pena, que pareceram muito bem por serem muitos, e outras muitas sortes de aves e caças, manjares e frutas, tudo em grande abundância e grande perfeição.»

«Muitas e grandes festas se fizeram tôdolos dias e noites até domingo, cinco dias de Dezembro, em que houve outro segundo banquete na dita sala (...)

»Começaram a comer, e por a infinidade das iguarias, manjares, conservas, fruitas, que foi como consoada, durou muito grande espaço. E acabado houve muitos e ricos momos e mui singulares entremeses (...)»

«LIVRO DE COZINHA» DA INFANTA D.MARIA

O manuscrito do Livro de Cozinha da infanta D. Maria apresenta-se repartido em quatro secções ou cadernos - «Caderno dos Manjares de Carne»; «Caderno dos Manjares de Ovos»; «Caderno dos Manjares de Leite»; «Caderno das Cousas de Conservas» (0nde se inclui toda a doçaria) - que, muito provavelmente, seriam de início independentes e só mais tarde reunidos e encadernados num só volume.

Por outros documentos da época sabia-se que se comia carne e peixe (frescos ou salgados), ovos, legumes e frutos; que a pimenta e a

mostarda, a salsa, os alhos, eram usados; que uma pessoa educada levava à boca um naco de cervo servindo-se apenas dos dedos - dos três primeiros dedos... Que o vinho entrava na confecção dos alimentos e regava abundantemente - e a todas as mesas - os repastos complementados por doces em que entravam o mel e ... (já!) o açúcar. Mas... quais as receitas das iguarias? O Livro de Cozinha da infanta D. Maria aparece-nos assim como que a preencher uma lacuna. Começou a ser escrito no século XV e muitas das suas receitas reflectem uma grande antiguidade.

Tão «gostoso» volume fez parte da pequena livraria pessoal que a infanta D. Maria de Portugal, neta de D. Manuel I, levou consigo quando foi consorciar-se em Bruxelas com Alexandre Farnésio, duque de Parma, em 1565. «Doce» maneira de matar saudades!

CINCO RECEITAS DO LIVRO DE COZINHA DA INFANTA

D. MARIA DE PORTUGAL

PASTÉIS DE CARNE

«Tomarão carneiro ou lombo de vaca ou de porco fresco e toucinho velho porque põe sabor, e picá-lo-ão com cheiros e uma colher de manteiga e cravo e açafrão e pimenta e gengibre e coentro seco e sumo de limões ou de agraço; tudo junto, muito bem afogado numa panela ou tigela de fogo; dês que for muito bem afogado, po-lo-ão enfriar.

E depois de muito bem frio, deitá-lo-ão nos pastéis que já estarão feitos; então levá-los-ão ao forno e, depois que forem tirados do forno, deitar-lhes-eis caldo amarelo dentro dos pastéis (...).

E a massa dos pastéis será dura e os pastéis altos. E desta própria têmpera se fazem os de galinha, e também se fazem pastéis de panela desta têmpera, salvo que a galinha há-de ser feita em peças e cada peça sobre si.

E para estes pastéis serem muito mais saborosos, deitarão na massa a carne crua».

GALINHA MOURISCA

«Tomareis uma galinha crua e fá-la-eis em pedaços.

Então metê-la-eis numa panela e tomareis cebola e salsa, coentro e hortelã, tudo verde, e segá-lo-eis como para salada, e com duas colheres de manteiga e uma talhada de toucinho tamanho como meio ovo, e isto tudo dentro da panela com galinha e com tudo bem afogada.

E dês que for afogada, deitar-lhe-ão água, quanta abastar para se cozer a galinha, porque lhe não hão-de tornar a deitar água.

E dês que for muito bem cozida, deitar-lhe-ão os adubos e deitar-lhe-ão sumo de limões.

E depois que for muito bem cozida tomareis um pão e fatiá-lo-eis num prato, e deitareis a galinha em cima, e por cima da galinha poreis umas gemas de ovos escalfados, e por cima canela pisada».

BEILHÓS DE ARROZ

«Depois que o arroz estiver cozido com leite e temperado como há-de estar, e frio, tereis batido dois ovos com uma colher de farinha.

E tomareis do arroz, que já estará frio, e deitá-lo-eis nestes ovos que já tereis batidos. E depois de muito bem revolto nesses ovos, tereis a sertã com manteiga muito fervendo.

Então com a colher fareis os bocados, e tamanhos quiserdes, e detá-lo-eis na sertã; e se se espalhar pela sertã, tereis uma pouca de farinha num prato; então enfarinhá-los-eis.

E depois, tereis açúcar posto em ponto alto e passá-los-eis por ele.

Então deitá-los-eis num prato, e por cima canela e açúcar pisado.

E desta própria têmpera se fazem os de manjar-branco, senão que o manjar-branco se quer mais cozido que para a escudela e há-de ser de farinha mesma de arroz».

CANUDOS

«Desta própria tempre hão de ser os canudos de ovos, salvo que a massa há-de ser socada com a quantidade de açúcar que quiserem e um pouca de manteiga, que seja uma colherinha.

Então, esta massa muito bem sovada, então, numa bacia estendida com um canudo, e daí podeis fazer os canudos lavrados com um canivete, então num canudo emburilhados.

E dês que tiverdes feito os canudos que quiserdes, frigi-los-eis na manteiga, de maneira que não sejam queimados, senão rosados; e depois metê-los-eis dentro nestes canudos que já tendes feito, com um fuso; e depois de cheios todos, tereis açúcar clarificado, o ponto grosso.

Então passareis estes canudos por ele de maneira que não se quebrem e pô-los-eis muito bem postos no prato, e deitar-lhes-eis açúcar e canela por cima, pisada».

PARA FAZER OVOS MEXIDOS

«Para uma dúzia de gemas de ovos tomarão uma escudela de açúcar e deitá-los-ão num tacho, e então deitar-lhes-ão uma pouca de água-de-flor e pô-la-ão sobre o fogo e far-lhe-ão o ponto baixo.

Então fareis fatias de pão e deitá-las-eis dentro no tacho e, como estiverem cozidas estas fatias, tirá-las-ão, pô-las-ão num prato.

E tereis as gemas dos ovos batidos com a clara, e deitá-los-eis no tacho e, como levantar fervura, com uma colher mexê-los-ão para uma parte sempre.

E como se for coalhando, assim ireis mexendo de maneira que não os façais miúdos.

E tirá-los-eis inteiros e pô-los-eis em cima do prato, e por cima deitar-lhes-eis açúcar e canela pisada.

Então mandá-los-eis à mesa».

A INFLUÊNCIA DOS DESCOBRIMENTOS NOS HÁBITOS ALIMENTARES

Com os Descobrimentos, uma verdadeira revolução económica, tecnológica e demográfica ocorre em Portugal.

«Deram-se novas utilizações ao solo, apareceram novas técnicas de cultivo, difundiram-se novas plantas e utilizou-se com mais intensidade as fontes de energia natural», escreve Marques Bessa.

«Assiste-se em todo o período Renascentista a uma melhoria das condições de vida, com implicações nas condições de habitação e alimentação e conforto, trabalho e saneamento básico».

O consumo de carne generaliza-se no século XV e faz parte da dieta europeia, tanto a Sul como a Norte, graças em certa medida ao desenvolvimento das cidades, aumento dos rendimentos «per capita» e, muito particularmente, à intensificação da navegação, que exigia grandes quantidades de carne salgada que resistisse a longas viagens.

Sabe-se hoje em dia, que no século XVII se abatia uma média de 2.000 reses por ano, só para abastecer as frotas da Índia.

Para se entender melhor o progresso qualitativo registado na gastronomia portuguesa com a introdução das plantas exóticas e a enorme diversidade de gostos e paladares trazida pelas naus quinhentistas é necessário conhecer um pouco melhor os hábitos alimentares tradicionais dos portugueses naquela época.

Desde o final da Idade Média que a cozinha portuguesa vinha perdendo os excessos dos tempos feudais: tornara-se requintada.

Documentos coevos das Descobertas dizem-nos que as classes menos favorecidas se alimentavam essencialmente de cereais, legumes e vinho.

O suporte alimentar quotidiano consistia numa pobre combinação de aveia, cevada, trigo, milho miúdo, ervilhas, favas, feijão e couves.

Na falta de cereais, especialmente trigo, recorriam a produtos alternativos, como a bolota, a castanha e às vezes conseguia-se pão de milho ou de centeio.

Em contrapartida, a carne e o peixe constituíam a base alimentar dos subgrupos economicamente mais favorecidos.

A carne de porco e de carneiro (que eram mais caras e apreciadas do que as carnes de cabrito e de vaca) e as peças de caça (nomeadamente lebre, javali, faisão, perdiz) e as aves de criação (pato, galinha, etc.) eram habituais nas mesas mais ricas.

Segundo documentos daquela época, a carne era quase sempre servida assada no espeto, embora também fosse consumida cozida, picada e estufada.

A acreditar em Martinez Montino, autor da notável obra «A Arte de Cocina, Vizcocheria, y Conservaria», editada em 1611, o cozido à portuguesa (ou melhor, o seu antepassado, a «olla podrida» era já vulgar nos séculos XV e XVI, variando o seu conteúdo em função dos tempos e das disponibilidades de cada família.

Entre os ingredientes que faziam parte do cozido tradicional, enumeram-se a galinha, vaca ou carneiro, perdizes, salsichas, morcelas, pombos, lombo de porco, chouriços (longanizas), toucinho, carne salgada, línguas de vaca e de porco, orelha de porco, chispe, verduras, cebolas, alhos, nabos, salsa, etc., o que já revela alguma abundância e diversidade.

Também a cabidela (ou cabadela, como se dizia no século XVI) era extremamente popular ao tempo dos Descobrimentos, admitindo-se que um pouco por todo o lado, nas cozinhas dos castelos e lares portugueses fosse iguaria de primeira.

Camões, acreditando no que escreve em «Filodemo», era um grande admirador de cabidela:

«Poisa também cá as minhas dores

Me não deixam comer pão;

Nem come minha afeição

Senão sopadas de amores

E mil postas de paixapo

Das lágrimas caldo faço

Do coração escudela

Esses olhos são panela

Que coze ovos e baço

Com toda a mais cabedela».

O poeta-soldado refere-se pelo menos por duas vezes à cabidela neste poema e conforme demonstra no “Auto de El-Rey Seleuco» tem conhecimentos de gastronomia »pois, senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedela não se podem comer senão com cominhos».

No capítulo dos peixes, os mais apreciados eram o sável, congro, sardinha e a pescada, e eram preferencialmente consumidos salgados, excepto nas regiões piscatórias, onde eram frescos ( e neste caso eram fritos, assados ou servidos em empadas.

Dado o seu elevado preço, o vinho era geralmente misturado com água.

A diversidade e a abundância já eram, como se depreende destes dados, a característica principal da alimentação portuguesa no século XVI mas, se por um lado é discutível que fosse uma culinária saudável, poucos duvidarão, com certeza, que por outro lado as especiarias (vendidas a preços mais baixos e acessíveis) e as novas culturas agrícolas vieram melhorar consideravelmente a qualidade da gastronomia.

Na época dos Descobrimentos, surgem nos mercados locais a canela, cravo, pimenta, açafrão e o gengibre, lado a lado com novos e exóticos produtos que irão revolucionar as ementas, como o ananás, abacate, agrião, batata, milho, cacau, amendoim, tomate e pimento.

O milho, que Oliveira Marques diz ser conhecido dos portugueses «antes de 1525», foi definitivamente responsável, com o feijão e as hortaliças, por uma radical alimentar e principalmente agrícola, subtraindo o predomínio de culturas como o trigo, centeio e cevada.

Se, por um lado é verdade que «não foi antes dos séculos XVII e XVIII que a verdadeira revolução do milho se fez sentir sobre os hábitos conservadores dos campónios nortenhos, com o seu impacto sobre a alimentação, as técnicas, a produtividade e as rendas», conforme escreve Oliveira Marques, a verdade é que foi ainda no século XVI que os seus «alicerces (...) haviam sido lançados»