Mestre do Sardoal (II)

Continuação da primeira parte

Mas quem foi, afinal, o Mestre do Sardoal ?

Fernando Pamplona, no seu Dicionário de Pintores e Escultores, pouco esclarece, o mesmo sucedendo com a brochura Pintores do Século XVI editada pelo Museu Machado de Castro, obras que, sem prejuízo de uma pesquisa mais cuidadosa, resumem no essencial as referências biográficas do artista. Assim, apenas se revela que “Luís Reis Santos, com base no monograma MN e exterior do retábulo de Montemor-o-Velho, identifica o Mestre do Sardoal, como sendo Miguel Nunes, pintor manuelino, único facto ao qual poderá caber a leitura das iniciais MN”. Dos mesmos documentos se extraiu que Virgílio Correia interpretou as ditas letras como abreviatura que seria a assinatura de outro pintor coimbrão da época, Manuel Vicente, filho do pintor Vicente Gil.

Neste sentido aponta, também, um trabalho da Dr.ª Dalila Rodrigues, publicado na História da Arte Portuguesa - 2.º Volume: “Do Gótico ao Manuelino”- pp. 237 - 240, editado pelo Círculo de Leitores, em 1995, sob a direcção de Paulo Ferreira, que se transcreve:

“Vicente Gil e Manuel Vicente: «Mestres do Sardoal»

Tradicionalmente identificada como o único reduto que do século XV transita para o século XVI, a produção oficinal de Coimbra, técnica e incorrectamente designada de «Escola dos Mestres do Sardoal», tem permitido, em parte, resolver o difícil problema da transição de estilos e modelos de um século ao outro. Porém, se a homogeneidade dos modos expressivos, cristalizados num receituário inconfundível, permite a individualização das cerca de quatro dezenas de obras, saídas deste centro oficinal, da restante pintura portuguesa coetânea, não é menos verdade que o seu acentuado carácter retardatário as confina a espaço algo errático e, assim, de atenuada legibilidade face ao problema da continuidade estética entre a produção quatrocentista e quinhentista. Com efeito, os traços de raiz gótica prevalecem sobre outras influências lentamente assimiladas, sem que se verifique qualquer sentido de ruptura, identificando-se, no prolongamento cronológico deste receituário, uma produção anacrónica que confirma a sua marginalidade face a fenómenos de sensibilidade, manifestos em outras regiões provinciais artisticamente mais periféricas. Efectivamente, não deixa de ser paradoxal que esta marca tão eminentemente gótica se assinale justamente, e em exclusivo, na produção de uma oficina com sede provável em Coimbra, distanciando-se visivelmente do carácter inovador que a escultura e arquitectura assumiram na região.

Na base do agrupamento está o núcleo constituído por sete pinturas da Igreja Matriz do Sardoal publicadas em 1939 por João Couto, dando na altura origem à designação convencional de «Mestres do Sardoal» (Couto, 1939). Foi o seu formulário que permitiu agrupar outros núcleos dispersos, nomeadamente as sete pinturas que fizeram parte do políptico do Convento de Celas (MNMC), os dez painéis do políptico do Hospital de Montemor-o-Velho, dois dos quais volantes pintados no anverso e no reverso, S. Bartolomeu e Assunção da Virgem (MNMC), que pertenceram ao Mosteiro de Santa Clara de Coimbra, além de outras dispersas - O S. Vicente (Museu D. Leonor, Beja) que pertencem, juntamente com dois pequenos painéis de predela figurando dois Santos Bispos (MNAA), à colecção de Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, além da Adoração dos Magos(MNAA) e de seis painéis de predela, bastante danificados, provenientes do Convento de Semide (Miranda do Corvo).

A qualidade manifestamente diversa destas pinturas, identificável não apenas entre os vários núcleos, mas em painéis da mesma série, é, aparentemente, disfarçada por uma marca oficinal ou por um conjunto de características que as aproxima. Genericamente, esse formulário oficinal identifica-se na atitude hierática das figuras, que assumem primazia num espaço convencional, sem articulações de escala e perspectiva (embora ensaiadas com êxito em alguns painéis), revelando, na matéria densa e de grande opacidade, processos técnicos tradicionalistas. Em termos compositivos parece haver uma ordenação em torno dos eixos definidos pela marcação das diagonais e paralelas, tanto nas figuras principais, como nas secundárias (Malkiel - Jirmounsky - 1959). Os olhos amendoados e semicerrados, as sobrancelhas oblíquas, as bocas entre-abertas, definem fisionomias esquemáticas, em consonância com a rigidez dos angulosos panejamentos que, embora expressivos na sua exuberância decorativa, não escondem as acentuadas incorrecções anatómicas. Numa espécie de compensação pela simplificação dos cenários, a imagem, especialmente as figuras, são sobrecarregadas com detalhes decorativos, que se tornam mais visíveis nos fios texturados dos brocados, nos ornatos de pedraria (Assunção da Virgem e S.Vicente) ou na exuberância da ourivesaria (Adoração dos Magos), revelando a oficina, nestes pormenores, uma concepção medieval da imagem - a pintura entendida como objecto materialmente precioso. Apesar destes elementos caracterizadores, por vezes de manifesta feição artesanal, transitarem entre os vários núcleos, a pintura agrupada revela ser o resultado de um labor colectivo, isto é: o resultado da participação de pintores, no âmbito da mesma série e em núcleos distintos, com desiguais capacidades. De facto, se a Assunção da Virgem, dentro do formulário enunciado, revela soluções mais expeditas, tanto no sentido da composição como na delicada e harmoniosa distribuição da cor, os três bustos do Sardoal, e sobretudo o busto de Cristo, atingem uma qualidade inigualável, que os distanciam das restantes pinturas. Não é apenas a economia dos meios expressivos, nomeadamente o recorte das figuras num fundo que transita gradativamente de cor e que funciona como elemento unificador das três composições, que distancia estes três painéis do carácter manifestamente arcaizante da Virgem e do Anjo da Anunciação, da mesma série. O Busto de Cristo, incomparavelmente melhor concebido que os restantes, mostra na frontalidade, no hieratismo da figura, na sua simplificação formal e pictural, na postura e na extrema correcção da modelação das mãos, de uma expressividade rara, ser a melhor peça remanescente que saiu da oficina de Coimbra.

A influência goticista da escultura coimbrã, as influências bizantinas identificadas no carácter icónico de algumas imagens do Sardoal, aragonesas e flamengas, embora mais difusas, têm sido repetidamente identificadas sem que, contudo, se conheça a origem de qualquer protótipo que possa ter inspirado esta pintura, aparentemente homogénea, mas eclética (Pintura dos Mestres, 1971; Caetano, 1994, pp. 94-99).

A identidade dos pintores que integraram este centro de produção provincial, tão acentuadamente tradicionalista, não deixou de suscitar alguma polémica. Se a designação convencional inicialmente adoptada pode ser geradora de alguns indesejáveis equívocos, as hipóteses aventadas a propósito de um monograma um “M” e um “N”, identificado no pavimento do painel Anjo da Anunciação, no retábulo de Montemor-o-Velho, também não se revelaram consensuais. Luís Reis Santos, interpretando-o como um monograma do pintor, sugere a identificação com Miguel Nunes (Reis Santos, 1943, pp. 3-8, 265-268), um pintor conhecido através de duas informações documentais. Trata-se do pintor que, em 1513, aparece como testemunha numa aquisição de bens do pintor Gregório Lopes (Viterbo, 1903, p.p. 107 e 117) e a quem, em 1526, foi avaliada a fazenda em 25.000 reais, sendo referido no mesmo documento como escudeiro “escudeiro d’el-rei” (Correia, 1928, p. 70).

Na ausência de qualquer fundamentação que permitisse relacionar a actividade deste pintor com a oficina de Coimbra, Vergílio Correia, tendo por base o monograma, sugere a hipótese de se tratar de um pintor de Coimbra, Manuel Vicente, entendendo o monograma como uma abreviatura de “Manuel”. Pelo contrário, Nogueira Gonçalves propõe a interpretação do monograma não como correspondente às iniciais do autor ou mestre responsável, mas antes como abreviatura de “Manuel Emanuel”, alusivo à fórmula latina de “Deus Convosco”.

A hipótese aventada por Vergílio Correia parece ser a mais consistente, não no que diz respeito à interpretação do monograma, de cujo enigma comunga uma suposta data (1520?), mas pela actividade documentada em Coimbra do pintor Vicente Gil, pai do também pintor Manuel Vicente. Nomeado pintor régio por D. João II, em 1491, privilegiado por alvará, que lhe permitia usar armas na cidade de Lisboa, Vicente Gil encontra-se activo em Coimbra entre 1498 e 1525. Quanto a Manuel Vicente, privilegiado com o estatuto de escudeiro, encontra-se documentada a sua actividade entre 1521, data em que serve de testemunha de um emprazamento do Mosteiro de Santa Cruz e, ainda em 1530.

A continuidade dinástica da oficina parece ter sido assegurada por outro pintor, o maneirista Bernardo Manuel, filho de Manuel Vicente, que prolongará de uma forma definitivamente anacrónica o receituário da oficina.

Na conjugação dos dados biográficos dos dois primeiros pintores, com a proveniência das obras, maioritariamente de conventos da região e, ainda, com as armas de D .Leonor, que aparecem repetidamente firmadas em algumas obras (S. Vicente, Assunção da Virgem), é legítimo concluir que esta oficina provincial beneficiou do mecenato régio. E se, por um lado, a oficina parece resistir, sobretudo pela permanência da técnica e do formulário de base, ao fascínio da pintura flamenga, por outro, parece confirmar que as exigências estéticas do mecenato não teriam sido de todo decisivas para desencadear estímulos criativos nas oficinas portuguesas.

É sobretudo a partir do primeiro quartel de quinhentos que a pintura se orienta progressivamente no sentido da assimilação dos valores classicistas italianos, não sem que se verifique alguma conflitualidade ou mesmo dicotomia com o modelo primitivo nórdico, que, por tradição ou ainda por fascínio influenciou durante o período “joanino” o trabalho dos pintores portugueses.”

Em 1994, escreveu Joaquim Oliveira Caetano, no catálogo El arte en la época del Tratado de Tordesillas:

“Malkiel- Jirmounsky, que dedicó una vasta obra al estudio de este taller, pretendió ver en éste un posible eslabón entre el arte de Nuno Gonçalves y la pintura portuguesa del primer cuarto del siglo XVI dominado por la influencia flamenca, pero silas obras de Maestro de Sardoal de alguma manera pueden contribuir a explicar esa transición que de hecho es uno de los grandes problemas con que la historia del Arte português se debate, co será certiamente por su posición cronológica, ya que todos los ejemplares conocidos parecen situar-se en las primeras décadas del siglo XVI, sino mas bien por el atraso estético de um taller periférico que permanece cerrado a las principales inovaciones de su tiempo, permitindo de esta manera vislumbrar lo que puede haber sido uno de los caminos de la pintura nacional a finales del siglo XV.” (Caetano, 1994 - pp. 94-95).

Ainda na História da Arte Portuguesa atrás referida, no mesmo volume, pp. 240 e 243, escreve Dagoberto Markl, num trabalho intitulado OS CICLOS: DAS OFICINAS À ICONOGRAFIA:

“AS GRANDES OFICINAS

Esta tese vem, de algum modo, reforçar a nossa tese da existência marcante de influências estrangeiras na nossa pintura daquela época de transição. Assim, ao contrário do que se depreende do trecho citado (Caetano - atrás transcrito), o que se pode vislumbrar na Oficina de Coimbra é uma evidente componente hispânica à qual se associam elementos italianizantes claramente expressos no Anjo da Anunciação da Matriz do Sardoal (...). Uma outra via de influência, a francesa, verifica-se na Anunciação do Sardoal com o anjo entrando pelo lado direito. (...) Partindo do pressuposto das influências alienígenas* passamos à análise iconográfica de uma série de painéis nos quais a interpretação simbólica dos mais constantes temas do Novo Testamento revela, por si só, a marca prevalecente das escolas estrangeiras. Tomemos, como exemplo primeiro, a Anunciação. Convém dizer que nas representações deste passo bíblico, exclusivamente de origem nacional, notam-se alguns casos de um despojamento quase total, em que se valoriza, sobretudo, o jogo exclusivamente estético da organização de um espaço, no caso vertente a câmara onde a Virgem recebe o anjo anunciador, permanecendo como símbolo único, o vaso com os lírios, símbolo das três virgindades de Maria, antes, durante e depois do parto. Por vezes esse espaço rarefaz-se, reduzindo-se a uma óbvia intemporalidade. É o caso da Anunciação da Matriz do Sardoal.”

Num trabalho intitulado “Sardoal: Uma visão de futuro. - Perspectivas de reordenação e divulgação do seu património artístico” apresentado pelas Dras. Teresa Cunha Matos e Maria Teresa Desterro (ambas Mestres em História da Arte), nas Jornadas do Património, realizadas em Constância, em Outubro de 1998, organizadas pela TAGUS - Associação Para o Desenvolvimento Integrado do Ribatejo Interior, sobre o Mestre do Sardoal, escrevem o seguinte:

“Entre a inúmeras obras de arte que constituem o acervo artístico do Sardoal, não poderíamos deixar de mencionar, primeiramente, o conjunto de pinturas que, até à data mais tem contribuído para a divulgação do património local, atraindo estudiosos e todos quantos cultivam o gosto pelo património. Falamos, evidentemente, da série de pinturas pertencentes ao desmembrado retábulo da capela-mor da Matriz, que actualmente se conservam nas paredes laterais da capela do Coração de Jesus, da mesma igreja.

A Virgílio Correia se deve a identificação da autoria destes painéis, que constituíram o núcleo a partir do qual se fez a identificação de cerca de quatro dezenas de pinturas, agrupadas por afinidades estilísticas, o que mereceria ao seu autor, inicialmente, o epíteto de Mestre do Sardoal.

De acordo com o citado historiador, trata-se de uma obra saída de uma oficina sediada em Coimbra, dirigida por Vicente Gil até 1518, ano em que lhe sucederia, no cargo, seu filho Manuel Vicente, resultando a maior parte das obras da parceria destes pintores com os quais com os quais colaboravam muitos outros oficiais, cuja inferior qualidade é manifesta em particularismos diversos. Com actividade documentada a partir de 1491, Vicente Gil seria nomeado pintor régio de D. João II, e manteve-se ligado aos círculos cortesãos da rainha D. Leonor, revelando tratar-se de uma figura de relativa importância nos círculos artísticos de então.

A surpreendente encomenda da obra a uma oficina de Coimbra encontra a sua razão de ser uma vez que o seu encomendante foi o bispo daquela cidade, D. Jorge de Almeida, irmão e testamentário do padroeiro da igreja, D. Francisco de Almeida, sendo ambos filhos do 3º conde de Abrantes e Vedor da Fazenda de D. Manuel, D. Lopo de Almeida.

Relativamente à data da feitura do retábulo supomos que se situará entre o primeiro e o segundo decénios de Quinhentos, já que o doador faleceu precisamente em 1510.

São apenas sete as tábuas remanescentes do políptico, felizmente recuperadas a fim de integrarem a Exposição dos Primitivos Portugueses, realizada em 1940, por ocasião da comemoração do duplo centenário da fundação da nacionalidade e da restauração da independência.

Em duas delas se representa uma Anunciação, em pendant, figurando o Anjo São Gabriel, em uma, e a Virgem, na outra. São tábuas de dimensões razoáveis, medindo cerca de 1470 mm de altura e 900 mm de largura. Outras pinturas, de dimensões aproximadas, representam S. João Baptista e S. João Evangelista distinguindo-se, o primeiro, pelo cordeiro, e pelo cálamo, o segundo. Subsistem, ainda, três tábuas de predela*, as melhores do conjunto, figurando na central o busto de Cristo, e os dos apóstolos, S.Pedro e S.Paulo, nos painéis laterais.

Não cabendo aqui uma análise detalhada da obra referiremos, apenas, sumariamente, algumas características que nos ajudarão a compreender melhor o seu enquadramento estilístico.

Trata-se de uma pintura de transição entre o Tardo-Gótico e o novo estilo emergente, o Renascimento, revelando, por um lado, um certo apego ao tradicionalismo goticista, no hierarquismo das poses e rigidez de panejamentos, na debilidade manifesta ao nível do tratamento perspético, bem como na persistência de algumas deficiências anatómicas, ao mesmo tempo que se abre, já, a sugestões flamenguizantes. O paisagismo fundeiro de alguns painéis e o delicado tratamento de pormenores revelam a forte influência que então se fazia sentir no nosso país através dos intensos contactos havidos com os principais centros artísticos do Norte europeu, nomeadamente Gand, Bruges e Antuérpia, em particular, onde Portugal mantinha uma feitoria.

A homogeneidade que ressalta do conjunto pictórico torna praticamente impossível a individualização de mãos. Notam-se, contudo, algumas diferenças acentuadas no tratamento figurativo, revelando-se a série de predela de bastante melhor qualidade que as restantes não sendo difícil adivinhar mão de mestre no busto de Cristo, de incontestável preciosismo. A expressividade do olhar, a finura no tratamento do rosto de porte aristocrático, e a elegância das mãos, denunciam a mestria do artista.

A identificação do pintor fez-se a partir de uma inscrição encontrada no políptico da Misericórdia de Montemor-o-Velho. Trata-se de um conjunto de grandes dimensões, representando ao centro uma Deposição da Cruz, com dois volantes de cada lado, figurando, num deles, S.João Baptista e a Natividade, opondo-se-lhe do outro, a Epifania e S.Pedro, correspondentemente. No reverso figura uma Anunciação, também em pendant, como acontece nas tábuas do Sardoal (isto é, de um lado o Anjo, do outro a Virgem). Foi precisamente na base de uma da pintura do Anjo anunciador que se encontrou o monograma MN, inscrito no pavimento. Após acesa polémica, suscitada pelo seu aparecimento, parece hoje não haver dúvidas de se tratar das iniciais de Manuel Vicente, o já mencionado filho e continuador de Vicente Gil.

Na parte inferior completa o políptico uma predela onde, à semelhança dos painéis superiores, os quadros laterais contêm pinturas no anverso e no reverso, representando-se em todas elas bustos de santos.

Alguns detalhes deste políptico aproximam-no, claramente, do conjunto do Sardoal, em particular as figuras do S. João Baptista e do S. Gabriel, sendo grande a similitude do Agnus Dei, dos dedos indicadores que o apontam, das posições e desenhos dos pés, da expressão dos rostos e enfim, do posicionamento das figuras, de um modo geral. As próprias irregularidades no traçado do pavimento são comuns, e os caracteres da legenda do S.Gabriel confirmam a mesma autoria nas duas tábuas.

Apesar de todas as obras saídas desta oficina resultarem de trabalhos colectivos, apresentam as mesmas características comuns, como o tratamento das figuras em primeiro plano, idêntico tipo de rostos, ovalados e com olhos amendoados, a revelar, ainda, uma longínqua influência bizantinante, os queixos levemente salientes, as testas alta e os cabelos anelados, aproximações estilísticas estas que nos levam a atribuir, com segurança, uma série de obras a esta operosa oficina, que define a emergência estética do Renascimento coimbrão, em termos pictóricos. Perdurando ao longo do século XVI, Bernardo Manuel deu-lhe continuidade, evoluindo já de acordo com tendências maneiristas.”

Reconstituição do antigo retábulo da capela-mor da igreja matriz do Sardoal (por Fernando António Baptista Pereira).

Na obra “Vicente Gil e Manuel Vicente – Pintores da Coimbra Manuelina”, com edição da Câmara Municipal de Coimbra de 2003 e coordenada por Pedro Dias, escreve-se o seguinte:

«A história do retábulo da igreja matriz do Sardoal está intimamente ligada à figura de D. Francisco de Almeida, o primeiro vice-rei da Índia. Depois de um percurso impressionante, no tempo de D. João II, foi premiado por D. Manuel, já que, em 1495, a sua situação económica não era brilhante. Não tinha terras e vivia apenas do rendimento da comenda do Sardoal. Por alvará régio do Venturoso, passou a receber a terça do dízimo, o que andaria à volta de 200.000 reais. Renunciou a esta renda e no direito de apresentar o prior da igreja, em nome do seu irmão D. João de Almeida, conde de Abrantes, quando embarcou para a Índia, por julgar ser imoral acumular benefícios.

Não sabemos ao certo quando é que a encomenda foi feita, mas é indubitável que era da competência do padroeiro que, curiosamente, à data do convite feito por D. Manuel, para desempenhar o cargo de vice-rei, estava a viver em Coimbra, com o irmão, o bispo-conde D. Jorde de Almeida. Pode ter sido nesta altura que encomendou o retábulo, que só viria a ser acabado anos depois. Conhecia as obras coimbrãs e também as que a oficina de Vincente Gil e Manuel Vincente fizeram para outras paragens, nomeadamente, para Aveiro, onde tinha uma irmã, primas e sobrinhas.

No entanto, inclinamo-nos mais para que a obra tenha sido encomendada depois da tráfica morte de D. Francisco, pelos seus testamenteiros, o cunhado, o conde de Penela, D. Afonso Vasconcelhos de Menses, casado com a irmã D. Isabel da Silva, e, na ausência deste, o bispo-conde D. Jorge de Almeida, seu irmão. Ficou-lhe uma filha única, D. Leonor, que tinha o seu irmão mais velho D. João de Almeida por procurador. No testamento feito, nos dias 3 a 6 de Dezembro de 1509, a bordo da nau Garça, na torna-viagem, pediu para se concluírem as obras na igreja de Marvila, em Santarém, mas nada disse acerca da matriz do Sardoal.

Segundo a proposta de reconstituição conjectural de Fernando António Baptista Pereira, faltam dois elementos a este conjunto, que deviam estar no meio, nos dois registos superiores. Eram seguramente esculturas. Em baixo, temos Cristo ladeado por São Pedro e São Paulo; depois, a Anunciação de Nossa Senhora, com Maria à esquerda e o Anjo São Gabriel à direita; no alto, estão São João Baptista e São João Evangelista. É uma concepção muito simples, feita com economia de meios e com irregularidade na execução.

Se nos detivermos na pintura de Cristo, facilmente nos apercebemos da sua excepcionalidade, podendo ser colocado, sem reservas, entre as melhores obras da primeira pintura quinhentista portuguesa. Se, inversamente, atendermos a São João Evangelista, daremos com uma figura mal construída, com uma contorção quase repugnante, sem expressão nem brilho no rosto. E apesar de tudo, estão no mesmo retábulo. Uma vez mais, encontramos argumentos que vão no sentido de confirmar a hipótese da permanente parceria de pai e filho e a intromissão de diversos auxiliares. O Anjo aproxima-de do de Montermor-o-Velho, mas os dois São João, apesar de compositivamente semelhantes, diferem na factura do São Bartolomeu e do São Vicente de Santa Clara de Coimbra.

Mas há outros elementos que permitem conformar esta família pictórica, como é o caso das paisagens fundeiras, de claríssima influência flamenga, e os pavimentos, recorrentes e quase como que uma marca de oficina; parece até que não conheciam mais modelos.»


Posto isto, quer por bairrismo e orgulho sardoalense, quer pela grande importância da obra do Mestre do Sardoal, no contexto da pintura portuguesa na transição do século XV para o século XVI e também por o seu núcleo principal se encontrar na Igreja Matriz do Sardoal há cerca de cinco séculos, isso legitima, quanto a nós, sem por em causa conceitos de natureza histórica ou técnica, a designação Mestre do Sardoal, que o Dr. João Couto lhe atribuiu em 1938 e que tanto orgulha os Sardoalenses.