Mestre do Sardoal (I)

Na Capela dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, da Igreja Matriz da Paróquia de S. Tiago e S. Mateus de Sardoal, encontram-se sete pinturas a óleo, sobre madeira de carvalho, com preparo de cola e cré, que constituem o mais importante património da Vila e Concelho de Sardoal.

Como adiante explicaremos, desde o final dos anos 30 do século XX que foram atribuídas ao Mestre do Sardoal, pintor quinhentista, mas que se sabe hoje terem saído das oficinas dos pintores da Coimbra manuelina Vicente Gil e Manuel Vicente. A datação aproximada é de cerca de 1510 a 1520, por encomenda do primeiro vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, ou pelos seus testamenteiros.

Ainda assim, por o retábulo da Matriz de Sardoal ser constituído de um valor artístico inegável, motivo de orgulho de todos os Sardoalenses, por isso mesmo estes partilham a sua cidadania local com o seu autor, não havendo académico, por mais conceituado e respeitado que seja, que os convença de que ele não é o Mestre do Sardoal...

São sete, como dissemos, os painéis do políptico do Sardoal, que são propriedade da Paróquia do Sardoal. A saber:

Busto de Cristo

Busto do Apóstolo S. Pedro

Busto de S. Paulo

Arcanjo S. Gabriel/Anjo da Anunciação

Virgem da Anunciação

S. João Baptista

S. João Evangelista

Foram estas sete tábuas que constituíram, talvez, o primitivo retábulo da Matriz de Sardoal, que serviram de base ao agrupamento de um núcleo com mais de três dezenas de pinturas, com características próprias, fora de uma linha estética comum a qualquer das escolas portuguesas dos séculos XV e XVI.

Estão neste caso os dez painéis do políptico de Montemor-o-Velho, os seis do políptico de Celas (que segundo as opiniões de alguns estudiosos é o que tem maior identidade com o núcleo de pinturas da Igreja Matriz de Sardoal), propriedade do Museu Machado de Castro de Coimbra, que possui ainda outras duas pinturas do Mestre do Sardoal: A Assunção da Virgem e S. Bartolomeu.

No Museu Rainha D. Leonor, em Beja, encontra-se outra pintura do Mestre do Sardoal: S. Vicente, assim como no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa que possui a Adoração dos Magos. A Fundação Ricardo Espírito Santo Silva - Lisboa, possui uma outra: S. João Baptista, o Museu de Évora que possui uma outra: Dois Santos Bispos. Os herdeiros de Vasco Bensaúde, possuem outras duas pinturas: Santa Catarina e Santa Apolónia e o Professor Dr. Silvério Gomes da Costa, possui uma outra: S. Roque e S. Sebastião. Conhece-se ainda uma outra pintura de proveniência e entidade possuidora desconhecida que retrata Santo António e S. Francisco.

O Dr. João Couto, num trabalho intitulado “Pinturas Quinhentistas do Sardoal”, publicado no Boletim da Academia Nacional de Belas Artes - Vol. V -1939, conta como descobriu as tábuas do Sardoal:

Na minha última visita a Abrantes, o acaso levou-me a encontrar o advogado Dr. David Serras Pereira, meu contemporâneo em Coimbra, que me convidou a visitar a vila onde nascera, o Sardoal.

A passagem do “GUIA DE LISBOA”, que anunciava a existência na Matriz do Sardoal de algumas tábuas, sem dar a menor indicação do assunto e a autoria, levou-me a aceitar a proposta do Dr. Serras Pereira.

O Sardoal é uma bonita e asseada Vila, distando poucos quilómetros de Abrantes. As suas igrejas: Matriz, Misericórdia e Nossa Senhora da Caridade, estão cheias de motivos arquitectónicos, do gótico e da renascença, excelentes altares e boa estatuária. Ao percorrer a Matriz não dei logo pela existência das pinturas. Mas o solícito Pároco Rev.º Eduardo Dias Afonso, levou-me à Casa da Irmandade do Santíssimo, que fica sob a capela-mór, onde se me deparou um estranho e belo retábulo do começo do século XVI, obra pictural de próxima parente da pintura do Mestre notável da Assunção da Virgem, do Museu Machado de Castro, de Coimbra.

O retábulo (?) do Sardoal, hoje dividido, compõe-se dos seguintes painéis pintados sobre tábuas de carvalho, com genuiníssimo preparo de cola e cré.

Busto de Cristo - nimbado, com a cabeça coroada de espinhos e corda ao pescoço, as mãos chagadas, em atitude de orar - obra admirável de realismo e espiritualidade.

Busto de S. Pedro - com as mãos muito bem moduladas, cruzadas sobre o peito e em uma delas a chave.

Busto de S. Paulo - com as mãos postas e para além delas a espada. O rosto dos dois Santos não são menos belos e expressivos que os de Cristo.

A Virgem da Anunciação

Anjo da Anunciação (S. Gabriel) - empunhando o ceptro, encimado de um ornato gótico flamejante, com tintinábulos.

S. João Baptista - com o livro e o cordeiro.

S. João Evangelista - com o livro e o cálamo.

E termina assim a comunicação do Dr. João Couto: “Largo e nítido no desenho, certo e opulento nos volumes, movimentado e rico nos panejamentos, assombroso e doce na recolhida expressão dos rostos, nas mãos, nas atitudes, o Mestre dos quadros do Sardoal é, sem exagero, um dos mais fortes representantes da pintura portuguesa do primeiro terço do século XVI. Fazemos votos por que todas as tábuas figurem na grande exposição comemorativas dos Centenários, ao lado das que com elas apresentem afinidades de estilo.”

De facto, cumpriram-se os votos do Dr. João Couto e as pinturas do Sardoal estiveram presentes na referida exposição, depois de restauradas pelo atelier de Fernando Mardel, mas segundo consta foi preciso, depois, desenvolver continuadas diligências para que regressassem ao Sardoal...

Armando Vieira dos Santos, em estudo publicado no “Catálogo das Obras Atribuídas e Roteiro da Exposição de Abrantes - 1971”, refere o seguinte:

“Mas é preciso não sobrelevarmos a importância dos painéis de Lisboa em detrimento de outros, porventura menos importantes e operosos, que também devem ter exercido alguma influência na pintura portuguesa da época, influência menos predominante porque apenas abrangia zonas regionais mais ou menos limitadas, afastadas dos grandes centros artísticos. É o caso, por exemplo, da oficina do chamado Mestre do Sardoal, autor das sete pinturas existentes na Igreja Matriz daquela localidade, evidenciadas em 1938 pelo Dr. João Couto, que logo as considerou de grande importância para o estudo da evolução da pintura portuguesa do primeiro terço do século XVI, opinião corroborada pelo Professor Myron Makiel Jirmounsky, que as estudou atentamente, sugerindo a sua filiação em correntes estéticas disseminadas pela Europa através de iluminuras, ourivesaria e outras artes menores e decorativas de origem bizantina e cuja concepção artística as aproximaria dos mosaicos, frescos e ícones dos séculos XII, XIII e XIV, concepção que se faz sentir, embora já atenuada em algumas pinturas da série do Sardoal.”

E mais adiante:

“Estamos, decerto, nas primeiras décadas de Quinhentos e em oficinas regionais:Coimbra ? - nas quais a compreensão dos modelos, sobretudo na composição era sentida por uma forma diferente da das correntes mais directamente e mais estritamente inspiradas nos receituários da Flandres.”

Por sua vez o Professor Malkiel Jirmousnsky, ao analisar a pintura Adoração dos Magos pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, apesar de a considerar mais afastada do estilo do Mestre do Sardoal, considera-a um exemplo da passagem do estilo do Sardoal para os Primitivos do século XVI avançado.

Vale a pena transcrever aqui, igualmente, algumas das opiniões expressas pelo já referido professor russo, Myron Malkiel Jirmounsky, sobre as pinturas do Sardoal:

«Porém, uma outra série de quadros mais importantes, sobre os quais o saudoso João Couto parece ter sido o primeiro a chamar a atenção, poderia, com mais razão, ter o papel de pintura de transição entre os dois estilos e gostos mencionados. É a série dita do Sardoal.

O seu maior interesse reside, precisamente, no que ela contribui para explicar como se introduz, pouco a pouco e gradualmente, nas concepções plásticas do século XVI e formas do estilo quinhentista.

Esta séria pode, talvez, servir de testemunho a uma das formas de transição, forma provinciana, é certo, às vezes rudimentar - mas, por isso mesmo, transparente. Teria servido de uma espécie de trampolim entre os estilos das duas épocas, antes da cristalização das influências artísticas estrangeiras, bem determinadas, devidas, sem dúvida, às relações mais intensas com outros países. (...) Este estilo caracteriza-se pelos traços seguintes: rostos tratados de maneira sintética, em grandes planos quase unidos, com certo impressionismo e um jogo plástico de volumes generalizados, sobrancelhas oblíquas e olhos semi-cerrados, bocas entreabertas, olhares visionários, mãos com dedos afilados, atitudes hieráticas e amaneiradas, indumentária, na série dita do Sardoal, grosseiramente pintada e com largas pregas esculturais.

O que é particularmente notável é o processo de evolução gradual do estilo, em toda a série. Mais sintético, mais original nos três bustos, tratados com mais finura, sobretudo no busto de Cristo, de uma composição muito mais regular, onde a imagem aparece disposta sobre uma trama aparente, rigorosamente estabelecida. Os bustos dos dois Apóstolos tratados com mais negligência, apresentam o mesmo estilo, os mesmos largos planos, perdendo, contudo, aquela rigorosa qualidade. Os painéis da Virgem e do Anjo da Anunciação, de S. João Baptista e de S. João Evangelista, são muito mais rudes na sua execução. Manifestam o trabalho, dir-se-ia, de simples artífices, sem grandes conhecimentos técnicos. São mais grosseiramente tratados, com defeituosas anatomias, de maneira mais popular, mas com uma extraordinária audácia de colorido.

Apesar da sua rudimentar execução e desenho defeituoso (com excepção do Busto de Cristo) o sentido geral da composição é surpreendente. É notável a diferença, mau grado certo parentesco estilístico da forma de execução dos traços do rosto, das mãos e das cores, entre o quadro de Cristo e os de S. Gabriel e da Virgem. Parece, não obstante as semelhanças do estilo, que são, respectivamente, obras de um mestre mais requintado e de alunos com técnica menos hábil. A mesma observação, ainda que em menor grau, pode aplicar-se na comparação do busto de Cristo com os dos dois Apóstolos.

Seja como for, em toda a série de pinturas do Sardoal, o núcleo central, Jesus e os seus Apóstolos, atesta maiores conhecimentos de desenho e de técnica que os restantes, porém, parecem todos provenientes de uma oficina mais ou menos homogénea.

A concepção artística da composição, em toda a série, é muito particular. Dir-se-ia que uma prévia disposição geométrica, consciente ou não, foi concebida ou se impôs aos seus executantes.

Assim, no busto de Cristo quatro pontos de uma rede imaginária indicam os pontos nevrálgicos mais importantes regendo toda a composição: a face aureolada do Salvador, ou de um modo mais preciso, o cume da sua cabeça, cada uma das palmas abertas das suas mãos em gesto hierático de Deus oficiante e o nó da corda, símbolo da Paixão do Senhor. No painel de S. Gabriel a direcção que segue o braço e a mão do Anjo é paralela a certa inclinação da parte superior do corpo, sublinhando o gesto que instrui a Virgem nas disposições divinas. O joelho esquerdo, curvado em veneração, evidencia o carácter de adoração expresso pela figura.

A composição do quadro da Virgem da Anunciação é baseada, também, em gestos simbólicos a que preside igual determinação geométrica. A inclinação da cabeça indica a submissão à vontade do Senhor, inclinação esta que é sublinhada pela posição da mão direita, cujos dedos sobre o peito têm o carácter hierático do gesto triplo da saudação ainda usada no Próximo Oriente. Os dedos tocando a fronte simbolizam a devoção pelo pensamento: tocando a boca, a devoção pela palavra e tocando o peito, como neste caso, a devoção pelo sentimento. A perna ajoelhada, seguindo a inclinação da figura, exprime a humildade da genuflexão e os gestos da mão e do braço esquerdo atestam, outra vez, a ideia de veneração.

O maneirismo nos dois quadros de S João, pela posição das cabeças, das mãos e das pernas, também estão repletos de simbolismo. Estes gestos, podem ser interpretados como restos quase desaparecidos, pálidos reflexos do ritual antigo, cujas fontes devem ser procurados nos ritos orientais (Mudras = selos, gestos simbólicos e sagrados) da liturgia do Próximo Oriente. Não esqueçamos que os ritos simbólicos atribuem uma importância capital às atitudes, aos gestos e à posição dos membros e dos corpos, no drama sagrado e pantominado do serviço litúrgico dos orientais.

A trama geométrica que encontramos nestas composições da Escola do Sardoal lembra um princípio semelhante ao que se encontra na disposição das figuras dos painéis de S. Vicente de Fora. Lembra a disposição geométrica, com certas proporções fixas das suas figuras, como tentei demonstrá-lo algures.

De facto, na sua construção geométrica, o núcleo de pinturas da Escola do Sardoal é um outro exemplo das concepções artísticas próxima à dos mosaicos, frescos e ícones do estilo bizantino dos séculos XII-XIV, cujas ramificações e evoluções, como se sabe, podem ser estudadas, por exemplo, em Creta; vejam-se espécimes dos Museus de Cândia e de Atenas, no Monte Atos, em Mitra, dos séculos XV e XVI, na Sérvia, frescos dos Mosteiros de Neresi, do século XII, Milesevo e Sopotchany, dos séculos XII e Xv, entre outros e na Rússia, obras de Teófano, o Grego, do século XIV, em Novgorod, etc. .

Temos quase a certeza de que a tradição desta arte de origem bizantina nos foi transmitida através da iluminura, da ourivesaria e de outras artes menores, pelos mestres que a conservaram e, depois, a espalharam por toda a Europa, influenciando com ela as escolas de Siena, do sul de Itália, e sobretudo a catalã, como nos frescos de Tahull, com o seu carácter ornamental, sintético e geométrico.

A importância e a influência bizantina sobre a arte portuguesa é ainda mais provável dadas as relações directas e, especialmente, indirectas que na época parece estarem asseguradas com o Oriente. Vejam-se, entre outras, as informações que a este respeito nos podem ser dadas, segundo as crónicas de Rui de Pina e Damião de Góis, das descrições das embaixadas venezianas trazendo presentes a D. João II e a D. Manuel I.

É verdade, também, que todas estas influências foram muito atenuadas com o decorrer do tempo, mesmo nos quadros da série do Sardoal. Os outros quadros, os da escola, pintados com mais destreza, com preocupações de um desenho mais correcto, de ocidentalização muito mais marcada, manifestam influências estrangeiras da época, nomeadamente flamengas.

Tudo isto lhes imprime um carácter muito menos rude e original, de onde transparece uma evidente combinação com outras pinturas de sabor mais flamejante: Estas tábuas têm mais discrição, nas meias tintas, na uniformidade e na harmonia das cores, cuja audácia e justaposição por contrastes é tão nítida, na série propriamente dita do Sardoal.

Aquelas pinturas, aliás, não apresentam qualquer unidade entre si, antes denunciam, com certeza, colaborações diversas. O único laço incontestável que une esta série reside em certa semelhança da concepção artística: rostos do mesmo tipo, tratamento das mãos e do carácter muito especial da composição pela disposição da maior parte das figuras segundo formas quebradas das suas diagonais e paralelas.

Dissemos que nos quadros da escola, por conseguinte fora da série do Sardoal, a irradiação do estilo primitivo é ofuscada num ritmo crescente por elementos realistas estrangeiros. Portanto, o maior interesse de todo este conjunto consiste, talvez, na mudança gradual do estilo original para o estilo do século XVI. Nesse sentido a Adoração dos Magos do Museu das Janelas Verdes tem um particular interesse. O estilo flamejante invade e apaga quase por completo a originalidade estética do núcleo primitivo, conservando, apenas, certas feições do seu estilo próprio.

Em conclusão, somos tentados a supôr que o ponto de partida para toda esta série, quer a do núcleo do Sardoal, quer a da escola, foi uma oficina alimentada por tradições próximas das que inspiraram, ao menos paralelamente, a arte dos painéis de S. Vicente de Fora, no que ela conservou da influência bizantina, embora muito mais ocidentalizada. É verdade que os elementos de sabor bizantinante dos célebres painéis e de algumas obras do seu estilo não dão a impressão de pertencer à mesma escola do Sardoal. Os Painéis têm um tratamento “sácio” mais realista. O seu estilo foi criado por um grande artista que deixou o cunho pessoal na sua obra e que adquiriu uma formação pictórica, talvez, fora do País.

Este criador não seguiu, decerto, servilmente as fórmulas e os tipos comuns ao seu ambiente artístico imediato. Mas, pelo contrário, o artista do ciclo do Sardoal está muito aproximado do desenvolvimento de certo modo autócone da estética bizantinizada, mais próxima da ourivesaria, da iluminura e até mesmo de algumas esculturas pré-renascentistas, isto é, dos vestígios das influências artísticas orientais já acomatadas e que atestam o sabor do torrão natal do solo nacional.

Já o Dr. João Couto assinalou as afinidades que poderiam ligar o estilo do Sardoal com as artes menores e a plástica manuelina. De facto, citou as iluminuras da “Leitura Nova”, o cinzelado dos cálices, as decorações dos arcos da Charola de Tomar, certas figurinhas da Charola de Belém, etc.

Limito-me a evocar, como já fiz algures, um exemplo de entre muitos: as figurinhas cinzeladas no pé de um cálice do século XVI do Museu da Arte Antiga de Lisboa - Inv. 353 -. E, não é sem interesse que fazemos notar a sua concepção bastante similar destas figurinhas nas diagonais dos espaços que as enquadram, das linhas quebradas em três direcções, em forma de Z, que lhes servem de eixos, as pregas da sua indumentária e, enfim, um tratamento sumário e sintético, tudo isto lhes atesta afinidades estéticas com a série e pinturas do Sardoal, cfr. A mesma composição em Z de alguns frescos sérvios.

Se a antiga concepção bizantina, um tanto abastardada no Sardoal, se transformou no decorrer do século XVI de uma forma mais ou menos marcante no decorrer do século XVI de uma forma mais ou menos marcante, graças às novas concepções vindas do estrangeiro, particularmente da Flandres, esta nova concepção, todavia, tornou-se dominante, apoderando-se da pintura portuguesa e conservando-se nas oficinas como cânone, qualquer que fosse o mestre que as dirigisse.

E entre os pintores portugueses da primeira metade deste século encontramos representantes de diversos estilos e tendências consoante as escolas onde se filiavam.

É difícil, contudo, distinguir personalidades artísticas determinadas nos quadros que conhecemos. Já dissemos algures que “a pintura da primeira metade do século XVI em Portugal foi arte de oficina”.

Já nas corporações da Idade Média se deve ter verificado este sistema de trabalho oficinal.

Temos razões para supor que, em Portugal, tanto na pintura como na iluminura existiam especialistas de certos pormenores que os executavam em diversos quadros de estilos diferentes. Assim, parece-nos provável que certo tipo de gestos afectados, e de mãos como as do “estilo dito de Gregório Lopes”, de indumentária, etc., eram feitos nas oficinas pelos especialistas que se dedicavam precisamente à execução destes pormenores, ou pelos seus imitadores, mesmo nos quadros concebidos por mestres diferentes. Este mesmo facto poderá explicar, também, certas semelhanças verificadas em pinturas de estilos diferentes, tal qual se verificam para as diversidades que elas patenteiam.

Claro está que esta tendência não excluía a possibilidade de individualismo na origem de um maneirismo fortemente aparentado com a corrente dos maneirismos flamengos, tão difundida no Portugal da época, quer por influências da escola Gand - Bruges, quer mais tarde, pela de Antuérpia.“

Num trabalho dos Drs. Jorge Custódio e Margarida Garcês, publicado no jornal “O RIBATEJO”, em princípios de 1988, é traçado um quadro geral da pintura portuguesa no século XVI, que não resisto a transcrever, com a devida vénia, numa tentativa de enquadrar o Mestre do Sardoal, nesse contexto:

(...) Salientemos de tudo o que se disse, dois pontos: a designação de Mestre do Sardoal e a forma provincial e rudimentar do estilo.

Porquê aquela designação? Porquê o anonimato? Tendo por fundamento o retábulo do Sardoal, de estilo mais original e mais rude, que as tábuas da escola do mesmo nome. Couto preferiu uma designação que evidenciava, não este ou aquele pintor, mas sim o anónimo, pois era facto que as tábuas não estavam assinadas por uma personalidade X. Além disso, as características comuns não escondiam as dissemelhanças entre painéis, ainda que a uniformidade de estilo se fizesse sentir. Sendo assim, os painéis pertenciam a uma oficina e a uma escola.

É que a pintura desta época é uma pintura colectiva, ou melhor, para sermos mais correctos, de parceria. E se de facto, na Itália e na Flandres o “pintor” adquire uma especifciidade própria, isto é, ele é o criador desta ou daquela obra (logo tem propriedade sobre ela como ser individual, porque a caracteriza com o seu cunho pessoal, em Portugal isto não acontece. O fenómeno estético tem entre nós um carácter próprio que o liga ainda à concepção artística da Idade Média.

A pintura tinha uma função que não a de decorar ou ornamentar a sala-de-estar de um burguês ou de um aristocrata. Se, por vezes tal acontece, o que demonstra o interesse dos laicos pela arte, na generalidade a obra serve à devoção e é encomendada por clérigos e agremiações religiosas, tais como os mosteiros.

A análise estilística das pinturas do século XVI conduz-nos a uma série de observações que importa resumir para entender na profundidade o verdadeiro significado do trabalho de oficina:

a) - A co-existência de vários processos técnicos de escolas estrangeiras que se adoptavam, por exemplo, em uma só pintura;

b) - A imitação quase servil de gravuras de obras estrangeiras que circulavam em Portugal;

c) - O carácter essencialmente religioso dessa arte;

d) - A ausência de traços individuais que definissem de um modo perfeito uma personalidade artística que sobressaísse das outras.

Depois da encomenda e do contrato com determinado mestre, passava-se ao trabalho em oficina. O mestre, possivelmente, concebia a obra e fazia o esboço, e os parceiros, companheiros ou alunos, tratavam da execução, aplicando as cores, fazendo este ou aquele pormenor, modificando esta ou aquela linha, mas seguindo servilmente o Cânone e o objectivo da encomenda.

A sua actividade identifica-se com aquela dos artífices que cumprem o que lhes foi pedido pelo mestre ou pelo contrato. Depois da execução do tema central, então, talvez pudessem embelezar de uma outra forma o quadro, pela criação de acessórios que só viessem a demonstrar a grandeza do Criador. Procuravam dar exuberância ao tema central, criando e recriando um universo microcósmico de flores, pássaros, frutos, animais, pétalas e artesanato local que se subordinavam à imagem sacra estrutural, e eram, também, um campo de experiências para o livre exercício da liberdade criadora. Mas se, por este motivo, o artista estava menos condicionado, acontecia que, tal como aquele da Idade Média, que pintava frescos para preencher espaços nus, também o artista português do Renascimento, agora na posse de outros meios técnicos, era um crente, verdadeiramente inspirado para poder conceber e realizar um objecto de devoção, um sinal do sujeito, uma forma de ensino da palavra divina pela imagem sagrada.

Ora, esta psicologia presa à sensibilidade religiosa da Idade Média encontra o seu fundamento na persistência, durante o século XVI e XVII, da estrutura corporativa da sociedade portuguesa. Ao aumento de procura da pintura de cavalete, sucede um recrudescimento da actividade das oficinas de pintura. Elas estão, contudo, presas às fórmulas de trabalho da Idade Média, segundo o padrão das guildas estrangeiras e à rigidez dos Regimentos das Corporações.

No Cap. XXXIII, fols. 122 do Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa, redigido pelo licenciado Duarte Nunes de Leão, em 1572, encontramos as razões da uniformidade relativa na execução e também nivelamento de estilos, não somente no interior das oficinas, mas também em todas as expressões pictóricas portuguesas do século XVI, mais ou menos contemporâneas.

O regulamento, diz o autor que seguimos de perto, torna obrigatória a inspecção por examinadores especiais de toda a pintura executada em Portugal. Esta inspecção devia realizar-se todos os meses com o direito e ainda a obrigação (sob pena de sanções) de fazer parar todo o trabalho em desacordo com a maneira e gosto admitidos oficialmente.

Estabelece-se, portanto, como cânone absoluto, o gosto oficial que devia ser comum, o qual, rectroactivamente, impedia as divergências técnicas e artísticas de duas oficinas ou escolas e, noutro sentido, pela estética obrigatória, paralisava a liberdade criadora em potência do artista. Esse gosto oficial, era concretamente o gosto um pouco eclético da oficina de Lisboa que monopolizava não só as encomendas da capital, como também da província. Daí que apareçam colaboradores de Jorge Afonso, por exemplo, Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo e Gaspar Vaz, a trabalhar em Tomar, Coimbra e Viseu.

Por outro lado, se em determinado local (assim nos informam os documentos), estes artistas são contratados para dirigir as obras, noutras vezes são simples parceiros dos seus antigos colaboradores.

Infere-se daí, que o pintor seja mais um artífice do que um artista, para o qual o fenómeno de pintar se inseria no processo normal de uma actividade mecânica. Pois, é verdade que, tanto ele executava os retábulos, os trípticos ou tábuas soltas, como estofava imagens, coloria bandeiras das confrarias para as procissões ou entradas triunfais, desenhava brasões, dourava varas de palio ou executava a maçonaria de painéis. Só o seu talento, acrescentado da experiência o tornava conhecido e lhe abria perspectivas de não só chegar a mestre e director de uma equipa de parceiros, como lhe dava fama nos círculos cultos da época.

Sardoal, pequena vila perto de Abrantes, tivera provavelmente, como outras cidades e vilas de Portugal, os seus artistas, além dos seus sapateiros, tecelões, pedreiros e ferreiros. Os artistas não seriam mais do que artífices que sob orientação superior de um mestre realizavam a encomenda para o mosteiro das redondezas ou para a igreja matriz próxima, aonde os fiéis, devotamente se ligavam pelo espaço e tempo sagrados a Deus.

Uma outra ordem de observações articula-se, no entanto, a estes novos elementos. Para além do núcleo central do Sardoal, há uma identidade de processos, de cores e de formas nos painéis da escola. Ter-se-á dado o fenómeno da irradiação? O estilo do Mestre do Sardoal irradiou, na hipótese, dessa vila e cobriu uma área correspondente à zona central do território, abrangendo Coimbra, Montemor-o-Velho, Abrantes, Beja, isto é, locais aonde foram encontrados painéis com traços paralelos àqueles do Sardoal.

Por outro lado, a escola e irradiação do Sardoal não seria de modo algum o único fenómeno. Coimbra, Tarouca, Viseu, Caldas da Rainha, demonstram que se a escola oficial impõe cada vez mais o seu padrão desde Francisco Henriques, Jorge Afonso ou um Frei Carlos, havia, outrossim, uma intensa actividade regional.“

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