2. Casamentos
Os casamentos eram momentos importantes da vida das famílias, das quais reflectiam o estatuto social, também traduzido na quantidade e qualidade dos pitéus que se apresentavam. Daí que eu não resista à tentação de transcrever neste trabalho, a versão romanceada e talvez um pouco exagerada de um casamento descrito no livro “NA TERRA DOS GREGÓRIOS”, escrito por volta de 1920, pelo Sardoalense Gregório Cascalheira e que julgo passar-se em Entrevinhas, que o autor designa por “Entre-Faias”:
“...Para a boda da Rita, que assim se chamava a futura esposa do Luís, tinham vindo convidados de todas as aldeias em redor, e enquanto eles lá dentro galhofavam em franca alegria, cá fora, sob um alpendre, os jericos onde tinham vindo pendiam as orelhas tristes para o chão, muito cismáticos, filosofando talvez consigo acerca da vaidade das burras da época, tão diferentes das burras antigas, que usavam de outros modos, incapazes de levantar os olhos para um cavalo! Outros tempos, outros costumes! E indiferentes, os pobres asnos, iam deixando correr a vida de canseiras sem um meneio de orelhas de revolta, quando deselegantemente espetado na esquelética burra apareceu o jovem Teodoriquinho. Verem-no e fazerem-lhe logo ali uma manifestação de agrado que faria inveja a muitos políticos da nossa terra, foi questão dum mexer de orelhas!
Cheirando-lhes a burra, arreganharam os focinhos, reviraram as trombetas para o Azul, descreveram círculos cabalísticos e desfecharam um coro de zurros o mais desafinado possível.
A jumenta agradeceu com um enigmático mover de orelhas, com uns incompreendidos meneios de rabo, fingindo não ligar importância, fazendo, manhosamente, valer as asininas graças, como fêmea matreira, sem temor de concorrentes e Teodorico saltando em terra, olhou a casa da noiva: prédio baixo, abarracado, erguido sem preocupações de estilo, onde portas e janelas se foram abrindo segundo crescentes necessidades, ganhou ânimo e entrou.
Um fresco e agradável e certo perfume a maçãs camoesas dispuseram-no bem e, sorridente, mas muito digno, cumprimentou:
-Meus senhores!
Sentados em arcas de pinho que rodeavam a casa lajeada, os convidados corresponderam respeitosos:
-Salve-o Deus, colega!
Um dos mais velhos, vendo Teodorico de smoking e sapato de polimento, conheceu-o logo por palpite e vindo muito risonho, muito cumprimentadeiro, saudou:
-Ora venha de lá essa mãozada d’amigo! E Deus o traga em bem à casa do velho Pitorra!...
-Muito prazer em conhecê-lo, meu caro senhor!...balbuciou Teodorico deixando-se mirar da cabeça aos pés.
Fora do seu meio sentia o embaraço de qualquer saloio em sala de gente fidalga e perto duma janela, onde um porco por vezes vinha assoprar, ficou-se muito embaraçado, olhando as caras dos outros convivas, a quem, baixinho e a cada um de per si, o sorridente Pitorra informava:
-É o padrinho do meu genro que há-de ser!...
Nisto andava quando, tendo uma ideia súbita, perguntou amável, dando pancadinhas no ombro de Teodorico:
-Vossemecê perdoará o atrevimento, mas há-de vir com a sua ponta de fome, hem? - e sem dar tempo a qualquer resposta, pôs-se a berrar à porta da cozinha:
-Oh! Maria, traz lá um prato de macarrão aqui p’ra um amigo que chegou agora e está a suar!
-Para mim não peça nada, que não como! – informou Teodorico, e o bom Pitorra sorridente, fazendo-se desentendido oferecia:
-Vá uma talhadinha de melancia, que é da boa!
Teodorico estava com sede, a melancia agradou-lhe e não se fez rogar, porém mal tinha engolido a primeira talhada e já a Maria, uma rapariguinha de olhos inflamados e quase sem pestanas, poisava um enorme prato cheio de canudos de gorduroso macarrão, em cima duma mesita posta a meio da casa e onde todos os outros tinham comido.
-Agora quero que prove o nosso macarrão! - ordenava Pitorra empurrando Teodorico para a frente da mesita.
-Eu já almocei, Sr, Pitorra... dizia Teodorico olhando receoso a enorme malga fumegante.
-Barriga que não leva dois almoços não é barriga! Macarrão cabe sempre!...Ora não se acanhe! Olhe que é de amigo!...
À volta a conversa retomara pouco a pouco a algazarra do princípio, tinham perdido o respeito ao smoking e aos sapatos de polimento do futuro padrinho, o qual, sem saber como esquivar-se ao macarrão, tornava:
-Oiça, meu amigo, eu almocei já, para lhe agradar comi a melancia...Estou satisfeito, bem vê...estou satisfeito!
Porém o dono da casa querendo ser amável, não atendia a rogos semelhantes e insistia:
-Lá o macarrão tem de comer!...Quero que prove o vinho aqui do homem da ti’Ana do Mulherengo!...
O homem da ti’Ana do Mulherengo, inchou o peito, e olhando de esguelha para Teodorico, exclamou com orgulho:
-Não é por ser meu, mas...vinho assim poucas vezes lhe há-de bater nos beiços!
Ao lado, na cozinha, altercavam duas mulheres e dizia uma:
-Lava-te com sabão que descasca melhor!
-Oh! Mãe - dizia a outra - mas hoje sempre julguei que tivesse cá sabonete...
-Lava-te com sabão e não me azoines o toutiço, fidalga!
-É só um cigalhinho!...
-Com menos me lavei eu no domingo, p’ra deixar esse p’ra ti...
-Oh! Mãe!
-Cala-te, Rita! Olha que te rejeito com um tanganho!...Olha, olha, olha!...
E Teodorico, em frente da mesita, olhava o macarrão, pensando aterrorizado que havia uma mulher que se não lavava com sabão há seis dias! E podia viver! E tinha, talvez, cozinhado aquele macarrão!
-Matou-se a melhor borrega! matraqueava Pitorra - Está um macarrão de se lhe tirar o barrete!
-Não teime, senhor Pitorra, tenha paciência! Até me podia fazer mal!...
-Essa agora! exclamou Pitorra dando um passo atrás - Macarrão fazer mal? Uma comida que atira com os doentes para fora da cama!...
-Macarrão fazer mal! - repetia Mulherengo, abanando a cabeça de maneira pouco lisonjeira para o jovem padrinho - Essa agora cá me fica!...
Os outros convidados olhavam para Teodorico com certo desdém, desaprovando a ofensa feita aos gordurentos canudos, murmurando:
-A gente sempre ouve cada uma! Macarrão fazer mal!... - e, consigo, passava-lhe gratuitamente um atestado de parvo.
(...) Ao saber da chegada do fidalgote das Ambrósias, Fael, compadre e convidado do Luís Pucariço, largara da Azenha e viera ao encontro do seu amigo, com uns planos, lá no seu íntimo os quais, se não falhassem, dariam brado!
Vindo de seu vagar, caminho acima, ruminando coisas, armando castelos, chegou precisamente na altura em que Teodorico, pegando no garfo de ferro, se decidira ao sacrifício.
-Ora viva o sôr Pindorico! - gritou Fael para que todos ouvissem bem.
Teodorico pousou o garfo, correu sorridente para Fael, orgulhoso de tamanha intimidade e cumprimentou-o co o júbilo com que se saúda um salvador.
-Inda bem que o achei, homem! Lá em baixo já o julgam perdido! - Exclamou Fael.
-Então vamos! Vamos lá! -disse Teodorico agarrando-se àquela tábua de salvação, tentando escapulir-se.
-Ainda é muito cedo! - afirmou Pitorra -Ainda tem tempo para provar o macarrão!
O noivo à espera...- acrescentava Teodorico cada vez mais perto da porta, suspirando por ver-se na rua.
Fael chegara-se junto do prato onde os canudos de macarrão arrefeciam, melindrados talvez com o desprezo de Teodorico e para acabar com a teimosia dos dois, pôs-se a comer o macarrão, engolindo satisfeito a sopa por entre a galhofa dos presentes.
Teodorico suspirou agradecendo do fundo da alma ao salvador Fael, porém Pitorra não estava contente e continuava:
-Visto não lhe apetecer o macarrão tem de comer uma fatia de pão alvo com queijo! Se não aceitar, tomo por desfeita!...
Teodorico não teve remédio senão fazer a vontade ao velhote e constrangido, mastigou aquele pão que se lhe esfarelava na boca seca, enquanto Pitorra muito pesaroso, repetia:
-Pois olhe que não sabe o que perde! Um macarrão daqueles!...Cada vez que m’alembro sôr Pindorico! Um macarrãozão!...
E Teodorico conseguiu escapulir-se. Dentro em pouco, de burra atrás, sombrinha aberta e Fael ao lado, suspirava de alívio. Ia em demanda da Azenha onde tinha posto a esperança de melhor acolhimento. Dum lado, aqui e além, aos magotes, casebres abarracados formando o lugarejo de Entrefaias, do outro, a encosta com as suas hortas no sopé, juntas ao ribeiro meio seco, que as varas das picotas pareciam espreitar.”
Isto passava-se antes do “casório”. O pior estava para vir, depois do casamento, na Vila, onde os noivos ficariam a morar. Convém, antes, referir, que Teodorico era um “alfacinha” de gema, que se deslocava pela primeira vez à província, para curar um desgosto de amor.
“(...) Julgara Teodorico que ali findassem os martírios daquele dia bem passado, em breve notou o engano.
Tratava-se apenas de dar aos noivos posse da casa onde veriam os dias deslizando pelas suas vidas, monoritmícos como gotas de água caindo de torneira mal fechada.
A posse celebrou-se com o inevitável pão e queijo e, por requinte de abastança, com tremoços e bolos.
A noiva mostrou a moradia aos convidados que, para não perderem tempo, iam vendo, comendo, lisonjeando o bom arranjo do casal feliz e sujando tudo por onde passavam, deixando o chão coberto de migalhas, nódoas de vinho e cascas de tremoços que atiravam para os cantos.
Fartos de pão e queijo, a Rita chamando os seus convidados, abalou para casa do pai e o Luís, com as da sua comitiva, desandou para a Azenha a acabar de encher os estômagos insaciáveis a todos quantos convidara.
Teodorico, mais uma vez no mato dos caminhos, lá fora metido no meio daquela gente que pelo dia fora, de instante a instante, se punha a comer, ora aqui, ora além, sempre com um apetite admirável, mais parecendo que tudo quanto mastigavam lhes não seguia para o estômago, mas sim para mais largo reservatório.
Nunca acreditara na teoria de certo filósofo antigo que afirmara ter o homem três almas, uma na cabeça, outra no peito, na barriga a última. Estava, porém, disposto a acreditar que cada um dos que o rodeavam, não teria certamente as três almas como o outro queria, mas três estômagos tinha com certeza e três estômagos dos grandes!
E Teodorico sentado em cima da arca, ao som da flaita do gaiteiro relembrava em dois segundos o jantar da festança.
À porta da Azenha, sob a latada onde os cachos de uvas ainda verdes se dependuravam das vides esparralhadas num encaniçado miudinho, atado com laços de rafia, os convidados do Luís abancaram satisfeitos.
Perto, na pocilga, um porco grunhia nostálgico, lembrando, talvez saudoso, a liberdade dos montados.
Os homens não interessaram, meteram-lhe nojo. Olhou-os desconfiado, assoprou pelas tábuas e foi refocilar-se no canto mais encharcado, esparrinhando água suja, refastelando-se, gozando a frescura imunda, num prazer talvez igual ao sentido por qualquer dama, na voluptuosidade suave do banho perfumado.
O jantar principiou silencioso, apenas o ruído de colheres que raspam no fundo dos pratos e o resfolgar de quem sorve, sofregamente, a sopa quente.
Aí pela terceira repetição dos gordurosos canudos que Teodorico desprezara ao almoço e agora, mercê de um apetite novo, comia sossegado, alguns convidados levantaram-se da mesa para, formando grupos a seu bel-prazer, comerem mais à vontade.
Uma velhota trouxe da Azenha uma tigela de barro, negra do fumo dos graviços, cheia de nacos de carneiro guisado.
-Vá! É chegar a malta! - dizia contente: - Deste não no apanham vossemecês todos os dias!... Pois não, ti Jacinto?
-É que nem todos os dias são de boda!... - respondeu o interpelado, enquanto Fael aconselhava sôfrego:
-Não chame ninguém! Todos virão em lhes cheirando... e para o camarada mais próximo: Oh! Papoila, dá cá essa ferramenta daí.
Quando o Papoila lhe rejeitou o garfo de ferro, escolheu cuidadosamente um bom pedaço, pô-lo em cima do pão e indo sentar-se no fundo de um cesto virado, exclamou:
-Cá me vou arranjando! P’ra carne refogada sou um alho! É o meu pitéu.
-E não vais mal amanhado! - comentou Papoila, servindo-se - Mas olha, Fael, quant’és a mim eu gosto... sim, eu gosto... mas estou quasi a pensar que isto de carnes não fazem senão mal!...
-Essa agora! - respondeu em coro, meia dúzia de convidados.
-Já lhes disse!.. - .afirmava Papoila tentando pescar o maior pedaço. - Podem crer. Estas comidas não se dão bem com o interior de uma pessoa...
O porco grunhia mais desassossegado. Teodorico, atirou-lhe um pedaço de pão e sorriu ao noivo, informando:
-É p’ra contentar o maestro da orquestra!
O Luís não percebeu, mas sorrindo parvamente, acenou com a cabeça a dizer que sim, para não contrariar o padrinho.
Os convidados, com o seu pedaço de borrego em cima do pão, discutiam assuntos vários. No entanto, no grupo de Teodorico, Papoila continuava: - Podem crer! Esta gordurama...
-Boa! - contrariava Fael, escolhendo segundo naco de carneiro
Então os alifantes não comem só carne, Papoila, e eles padecem?
-Os alifantes não comem carne. - afirmou Papoila, sem saber o que semelhantes bichos comeriam.
Então que comem? Querem ver que é macarrão?! - achincalhou Fael.
Os alifantes... os alifantes... - iterava Papoila embaraçado.
- Tá calado, meu bolas! Tu nunca viste nenhum! - e dirigindo-se a outro grupo, no intervalo de duas formidáveis dentadas, Fael gritou: - Oh! Zé da Canha, não foi o teu Silvéro que viu um alifante lá na ceifa?
- Foi sim! E parece que um grande alifante! - respondeu Zé da Canha, orgulhoso por ter um filho que tinha visto um elefante.
- Pois diz-lhe que explique à sociedade se um alifante come ou não carne de gente humana...
Silvério, o ditoso Canha que vira um elefante, afirmava muito entusiasmado aos do seu grupelho, apesar das censuras duma velha muito temente a coisas da alma:
- Que um homem, bem comparado não passava, com licença do santo altar da mesa, dum bácoro!
- Tirantre a alma, criatura de Deus! Tirante a alma!... - berrava a velhota, enquanto Zé da Canha gritava ao filho:
- Oh! Silvéro então não ouves? Conta lá como era o alifante que tu viste em Espanha!
Oh! Sôr pai, pois que vi eu? Um alifante?! Boa! Vi mas foi pintado numas vistas!
- Mas quant’á configuração... era assim... era assim como um percevejo muito grande, mas era assim como um percevejo muito grande, mas muito grande, com dois rabos, um à frente, encaracolado, e outro atrás assim... assim como uma cana de milho mouro!
-Olha lá ó pá, inquiriu Fael - e tu viste se ele estava a comer carne de gente humana?
- Lá isso não sei.Ele estava a modos de estender a trombeira para uma árvore lá das Áfricas, agora se lá estava algum macaco escondido não no enxerguei...
- Pois coma o alifante macacos ou não coma, eu fico-me na minha! - Tornou Papoila - Desculpe se ofendo a sua palavra honrada, mestre Fael, mas... isto de carnes só fazem mal!
Amanhã me dirá se não anda enjoado. Eu já sei: em indo a uma boda ao outro dia ando a chá da Índia!
Teodorico olhava o porco e dividia com ele o manjar discutido, que o vegetariano Papoila, apesar de tudo, via desaparecer com mágoa.
Quando a velhota trouxe outra tigelada do mesmo petisco, Papoila, não perdeu tempo em mais discussões e atirou-se à carne como náufrago a bóia de salvação.
- Então Papoila - gracejou um velhote, que pela primeira vez abria a boca para falar - a carne faz-te mal mas atiras-te a ela como bichoalho às galinhas!
- Ora, rosnou outro, tomara ele lá mais no beiço de cima, que no debaixo estava ela!...
Por este tempo o jantar que principiara silencioso estava transformado em algazarra e vinha caindo a noite, sobre as coisas e sobre os homens feitos por Deus para reis da criação, quando Fael se levantou do bico da pedra onde se assentara, confessando:
- Estou mesmo até à maçã! Se me dessem um soco rebentava!...
Estalejaram ao longe as bombas pataqueiras dum foguete barato.
-Lá acabou a Rita de jantar! - bradaram os que ainda podiam falar.
O pai do Luís foi à Azenha e trazendo um enorme foguetão, raspou com a unha o buscapé, a desfazer a pólvora seca e chegou-lhe um tição aceso; o foguete esparrinhou um facho de fagulhas e soltou-se da mão experiente do moleiro que, de morrão pendente, pernas curvadas, arqueado, de cabeça revirada para cima, se ficou a olhar o céu, onde um clarão relampejou, seguido por um estoiro que atroou no Azul como ribombo de trovão valente e que assustaria as próprias estrelas, se não estivessem tão longe das coisas que vão passando nesta bola neurasténica que Deus fez, que Deus guarda, sabe-o Ele, só Ele o sabe para quê!
E Teodorico, olhando os pares rodopiando, p’r’ali estava agora, marasmado, lamentando o triste desejo que o trouxera para o meio de tal gente, onde havia homens tão maçadores que jamais se calavam.
(...) Teodorico abriu a janela, agoniado com o cheiro das ervas pisadas e com o bafo daquela gente tresandando a curral a três léguas de distância.
Em baixo, na pocilga, um suíno resfolgava sonolento. A casa despejava-se com alarido. Teodorico, olhando o céu estrelado, lembrou o sorriso zombeteiro do doutor Labrusca e sentiu pena. Vieram tocar-lhe mansamente no ombro, olhou: era o velhote Pitorra que lamentava:
- Cada vez que m’alembro, sôr Pindorico!... desprezar um macarrão daqueles!... Marcha um pratinho?
-Teodorico recusou de mau humor.
- Veja lá, não se acanhe, se tem fome, a Rita dá uma aquecedela à macarrãozada, veja lá!
A noiva, muito boa dona de casa, varria com os pés as ervas pisadas, aquela porcaria toda. Os padrinhos naquela noite ficaram todos em casa da noiva e o Teodorico, à falta de melhor, deram-lhe por quarto a sala de baile, por cama o tampo abaulado duma arca, onde a Rita estendeu uns sacos de palha fofa.
E Teodorico achou-se livre e só naquela casa iluminada por uma luz de azeite, que principiava a apagar-se e tão mortificado se sentia que adormeceu meio vestido em cima do tampo da arca nova. A luz bruxuleou por uns momentos, espirrou e apagou-se. Durante minutos ficou brilhando um ponto vermelho no escuro: era o morrão da torcida da candeia a desfazer-se em fumo e cinza, depois, mais nada.
Quanto tempo dormiu nunca o soube oTeodorico, quando acordou era noite velha e uma escuridão imensa envolvia a sala de telha vã.
A aldeia era em paz e Teodorico, meio vestido, meio despido, estava estava em cima da arca muito pouco satisfeito.
O pepino da tarde, armado em D.Juan, começara a roçar-se pela febra de carneiro aconchegada entre duas batatas. A carne, desdenhosa, repeliu o flirt do pepino atrevido e fugiu. Este, furioso, correu atrás dela, mas logo um pedacinho de queijo se meteu de permeio a conciliar, a pedir calma e sossego. Tudo serenou por momentos.
Teodorico lembrou-se da mudança de ares, de águas e sobretudo, das porcarias que durante o dia fora obrigado a ingerir e sentindo a fronte a humedecer, pôs-se muito quietinho.
De nada lhe valeu.
Uma sopa de pão, ciumenta, julgando o queijo, seu velho amante, embeiçado pela carne, teceu a intriga e tanto insinuou no ânimo fraco do sugestionável pepino, que este, inchando de zelos, pediu auxílio a alguns canudos de macarrão e saiu correndo endiabradamente.
Parecia o galopar dum regimento de artilharia!
O pepino, sempre seguido pelos canudos amigos, esmagou duas batatinhas entaladas num refego e apossou-se, à força, da carne, vítima imbele duma paixão mal contida.
O rapto foi trabalhoso, mas a força mais uma vez premiu direito e o pepino correndo, seguido pela malta dos macarrões levou a desditosa carne para o seu gabinete de trabalho, à quarta volta do intestino grosso.
Aí a luta foi terrível!
A carne defendendo a honra que tentavam manchar-lhe, dava pulos de pantera, enquanto o pepino, cioso, tentava infamemente prendê-la entre dois canudos barbaramente crús, dois macarrões que riam cinicamente das lástimas da carne.
Cada salto da carne, cada correria do pepino traduzia-se para Teodorico em agudíssima picada que o fazia estorcer em cima da arca.
- Isto precisa dum remédio! - pensou - E tem de ser muito rápido!
Entre dores horríveis correu à porta: estava fechada! Impossível encontrar a chave, o escuro era enorme.
A carne muito martirizada, arrepelava-se, todas as suas fibras se desprendiam dolorosamente e o pepino ia vencer, fazer mais uma vítima, quando Teodorico, às apalpadelas, na escuridão da casa, esbarrou com a janela.
Abriu-a devagarinho. A noite estava escuríssima, em baixo distiguiu um vulto, não teve tempo para certificar-se bem, era o porco com certeza.
Sentou-se no peitoril e o ar da noite aliviou-o.”
Apesar do tom irónico, bem humorado e algo romanceado desta descrição de Gregório Cascalheira, ela poderá (?) traduzir as “cenas de um casamento” dos anos vinte, principalmente na sua componente gastronómica, de natureza popular em que o centro das atenções estava no macarrão e na “Carne fresca”, o tal guisado de borrego que fazia as honras da festa.