Memórias da Festa da Flor (I)
JORNAL DE ABRANTES
2 de Junho de 1935
Festa das Flores
Com extraordinário brilhantismo realizou-se, como tínhamos anunciado, a festa das flores nesta vila, que esta Câmara resolveu fazer a fim de conferir os prémios que todos os anos costuma dar, com o fim de criar entre os munícipes o gosto pela floricultura, tendo sido premiados cerca de 81 vasos.
A sessão solene, no salão nobre dos Paços do Concelho, foi muito concorrida, tendo este enchido por completo.
Presidiu o Sr. Presidente da Câmara que era secretariado pelo delegado escolar neste concelho e chefe de secretaria de Finanças, Encontravam-se presentes todos os elementos oficiais.
Aberta a sessão, usou da palavra em primeiro lugar o presidente Sr. Lúcio Serras Pereira que proferiu o discurso que se segue:
“Exmºs Professoras e Srs. Professores, mulheres da nossa terra, meus senhores.
Na qualidade que represento de Presidente da Câmara e ainda como Sardoalense, a todos vós dirijo as minhas saudações.
Quis a Câmara este ano, no momento de dar os costumados prémios das flores, ás mulheres pobres do Sardoal, algumas palavras fossem ditas como que dando também através dessas palavras, alguma coisa de um forte sentimento que a tem animado e continuará animando na sequência da sua função social.
Era, mesmo necessário dar mais relevo a este acto, tirando dele, quanto possível, o significado moral. Assim, e em primeiro lugar, são para vós Exmºs Professoras e Professores, as minhas primeiras palavras, pois trata-se agora, sobretudo, de uma obra de educação.
Tem esta Câmara procurado, quanto lhe é possível, resolver cabalmente o problema magno do ensino primário em todo o concelho e a essa ideia, tem dado o melhor do seu esforço o seu programa com inicio de 1928, inscreveu como primeiro trabalho essa grande tarefa, e com vontade firme e persistente, tem sabido querer, e eis que 7 anos volvidos, esse seu querer nos deu as possibilidades para que hoje este importantíssimo caso esteja em vésperas de solução completa.
Isto, quanto á parte da câmara e no que respeita á sua obra quase exclusivamente material de vos entregar edifícios, móveis e objectos didácticos necessários.
O resto é quase tudo, é principalmente convosco. Vós sois o espírito, a alma que habita esses edifícios, de vós depende o bom ou o mau comando nessa tão linda batalha em que estais empenhados e quantas vezes a sós, abandonados do precioso auxílio dos primeiros pais das vossas tenras almas, vós sois os seus segundos pais e tendes a missão sublime de nesses pequeninos entes que são flores a desabrochar para a vida, criardes o seu ser moral, fazer com que nos seus espíritos dealbe á luz clara e pura de uma formação mental e espiritual perfeita.
Contar pois com a Câmara Municipal como quem conta com uma aliada fiel que jamais faltará ao cumprimento do seu dever, ela dar-vos-á sempre durante o exercício do vosso sacerdócio, todo o apoio que precisares, para que a geração que nos segue, possais dar a formação moral e intelectual que a torne digna das nossas gerações passadas e das quais nós somos representantes.
Agora vós, mulheres da minha terra, este é o terceiro ano em que vos é concedido o prémio das flores, maior ou menor, conforme o cuidado que manifestais no seu arranjo.
A Câmara, ao iniciar esta forma de vos interessar no embelezamento do Sardoal, quis e quer associar-vos á obra do progresso em todo o concelho.
Diz um ditado antigo: “Nem só de pão vive o homem... nem a mulher “ e assim necessário se torna e tornava que acrescentar aos melhoramentos de ordem material em proveito comum, cada um de nós, nas coisas que mais directamente nos dizem respeito se interesse, para que esta obra mais realce no seu conjunto geral e se imponha á consideração de outras terras e do governo da nação.
Através dos melhoramentos feitos, muitas casas de família tem tido o pão de cada dia, ganho pelo seu chefe ou filhos com o suor do seu rosto.
Que estas flores, regadas e cuidadas por vós com o suor, também do vosso rosto sejam a expressão firme de que tendes estado dispostos e continuareis a estar, para dar á terra onde nasceste e foste criadas, todo o amor que só vós mulheres sabeis completamente dar, quando dedicadas a um fim que vos fale ao coração.
Continuai a tratar das flores nos momentos que a vossa vida tão exigente vos permitir, tratar delas que são seres dedicados como são os vossos filhos, aprendei no seu tratamento a afinar os vossos sentimentos, sede pobres, mas pensai no arranjo das vossas casas, ninhos de afectos queridos, onde deve haver ao lado da modéstia da vossa fortuna, a limpeza e o asseio que é timbre e orgulho justo dos pobres.
Pensa a Câmara já, embora para realização em um futuro próximo, talvez daqui a dois anos nas festas das filhós de melhoramentos em 1937, poder apresentar aos Exmºs Ministros e outras altas individualidades que aqui vieram, um Sardoal melhor arranjado, completamente caiado e limpo e em que as vossas casas sejam como que a nota mais em destaque, pois para então confio que a Câmara irá distinguir aquelas cujo arranjo por fora e por dentro, justifique uma instalação de luz eléctrica, pagando simplesmente uma pequena avença e que será vantajosa para todas as famílias de pobres que o merecerem.
Meus Senhores!
Preciso é que cada um de vós varra a sua testada, assim teremos prestigio e autoridade moral para levar a todos os povos do concelho o convite e incitamentos que agora a Câmara vos está fazendo. Está o Sardoal neste momento como que em festa. Pequena festa em clima de família, em que não faltou a nossa música, que, na Praça irá executando algumas composições. Para essa corporação composta por alguns dos nossos humildes operários e trabalhadores, vão também os meus melhores desejos de que continuem honrando o passado desta terra, onde desde longa data, tem existido sempre tão interessantes e artísticas agremiações desta espécie, e de cuja existência e progresso tanto proveito social resulta, seja sob o ponto de vista artístico moral e material.
Como necessidades urgentes para um melhor progresso moral e social, temos muito ainda a realizar, mas de entre todas as realizações a efectivar surge-nos muito ainda a realizar, mas de entre todas as realizações a efectivar surge-nos como primeira necessidade a Casa do Povo do Sardoal. Ela virá também logo que afervorados estejam os nossos sentimentos de solidariedade.
A moral cristã tem de entrar nos corações de todos nós fazendo dos nossos lares verdadeiros tabernáculos expulsando de lá o egoísmo que ainda nos domina, e então, criado o grupo de apóstolos do bem, a oportunidade breve aparecerá para completarmos a nossa hora social com essa pedra angular do Estado Novo.
Estamos, senhores, a dois dias do 28 de Maio e a 4 da festa da Ascensão. Faz hoje nove anos antevésperas do 28 de Maio, que na vigília destes homens de armas, se temperavam as espadas que felizmente não foi necessário nessa ocasião brandir no peito sagrado da pátria.
Não cicatrizaram então inteiramente essas chagas, posteriormente várias revoluções se realizaram, como que supurações de um mal que parecia crónico, mas que agora vai estando debelado.
Festa da Ascensão daqui por quatro dias, festejemo-la hoje também, pois a nossa terra e a nossa pátria tem sido desde Salazar, permanente e gloriosa ascensão.
Recordemos as figuras grandiosas dos portugueses levados pela morte e que se bateram por esse ideal nacionalista que por felicidade nossa se impõe á Nação.
Evoquemos essa falange dos nossos mortos, cuja isenção procuramos seguir, lembremos também os homens antigos do Sardoal que ao seu desenvolvimento deram o melhor do seu esforço, tal como nos últimos tempos Máximo Serrão, figura de seu melhor paladino.
Formemos todos, a exemplo dos nossos maiores, uma nova ala de namorados, a nossa dama será a Terra Lusitana pela sua defesa e progresso juremos todos completamente, dando a vida se no-la exigirem. Preciso é que em cada um de nós viva mais forte a ideia de que a citados interesses individuais e dos das nossas famílias existe um maior e até mais sagrado interesse, o da grande família que habita a nossa terra, que é Portugal.
Viva o Sardoal... Toda a assistência correspondeu freneticamente batendo as palmas e dando vivas ao Sardoal. Levantou-se em seguida para falar o delegado escolar local, Sr. Manuel Pires, que pronunciou o seguinte discurso:
“Quando no passado domingo, o Exmº Sr. Presidente desta Câmara trocou comigo impressões sobre a modesta festinha de hoje eu louvei a sua iniciativa como aliás toda a gente mais ou menos culta o teria de fazer.
Compreendi nesta troca de impressões, o gesto inteligente da cooperação na educação do povo, gesto este a que eu na qualidade de Professor, não podia ser estranho. Bem hajam aqueles que á causa da educação, de boa vontade querem emprestar o seu concurso e assim Sr. Presidente, eu em meu nome e no das minhas colegas desta vila saúdo V.Exª.
Senhor presidente!
“O discurso de V.Exª, cheio de elevação, que acabo de ouvir tem para nós professores, alguma coisa de consolador por ver o caminho dispensado à escola, a atenção que merece a V.Exª a educação popular e a consideração pelo professorado primário a que tão pouco habituado estava. Assim mais uma vez me cumpre saudar V.Ex.ª juntando ás minhas e das minhas colegas as saudações da Inspecção Escolar que aqui represento.
Trata-se de uma apologia ás flores que tanto de semelhante têm as mulheres e as crianças. Com efeito, festa a que falte esta trilogia que Deus criou para alegrar o mundo é festa morta.
É por isso que esta reunião tem vida.
Emprestam-lha os lindos exemplares das flores que vejo no Pelourinho e o carinho de mãos delicadas de mulheres e porventura de crianças em que a fragrância das flores opera alguma coisa de motivo que as torna mais dóceis e delicadas. O grande escritor realista Eça de Queirós notou um dia que toda a paisagem é intolerável quando lhe faltam as flores, as crianças, fumo delgado da chaminé, ou enfim parede rebrilhando ao sol revelando de um peito, de um coração vivo.
Pode essa paisagem ser a que o escritor acha intolerável mas ainda assim aqui e além se têm de ver flores raquíticas embora, pedindo a esmola de uma gota de água consoladora vendo-se porventura as das estrelas brancas como a neve das montanhas, voltadas sempre numa saudação ao céu mas numa ligeira inclinação para o chão em sinal de humilde agradecimento á terra que lhe deu tudo o que tinha.
E é então que comparando a paisagem intolerável com que o poeta idealiza as flores... mulheres a vida enfim é então que nos têm de vir á mente e sem razão de tontos, que dentro da nossa vida social, se revoltam a miúdo, por uns terem muito e outros pouco ou nada. As suas exigências ferozes seriam bem menores se bem abrissem os olhos perante a natureza onde a desigualdade é tão manifesta: nas terras e nos céus, nas árvores e nas frutas, nas águas e nas neves. Quisera eu neste momento, Exmªs Senhoras e meus Senhores, de ter o extra de poeta ou o dom da erótica para cantar aqui hinos ás flores que tão bonitas as dos jardins de Portugal havendo-as que pela sua beleza e transparência parecem feitas daquele tecido de vento e luz tão cantadas pelos poetas da Grécia.
As flores têm alguma coisa que denuncia a psicologia humana e até o estado da sua alma e tanto assim é, perdoem-me a comparação que quando algum solteirão resolve por fim escolher a doce flor do seu encantamento para a companheira, hei-lo de cravo rubro e fresco na lapela como que a gritar ás damas dos seus anelos que não há-de ficar para tio. Enquanto de romântico tem, nas romarias o crisântemo fanfarrão no chapéu ou o belo cravo arrogante atrás da orelha dos rapazes dos nossos campos chamando a atenção das moças. Os perfumes das flores são os seus sentimentos disse um dia Henrique Heine.
Procuremos cultivar os sentimentos dessas flores em nossos filhos ensinando-lhes a amar este Portugal querido e quando todos soubermos imitar as virtudes do bairrismo e dedicação á causa do levantamento da nossa terra e portanto á causa do levantamento de Portugal que ressalvam da inteligência e criteriosa figura do Sr. Serras Pereira, nós teremos feito um Sardoal maior e melhor e cooperando assim na grande obra de ressurgimento da nossa nação em que anda empenhado o governo presidido pelo eminente estadista Dr. Oliveira Salazar.
Vão também os meus louvores ás senhoras expositoras das flores que com tanto brilho têm querido cooperar no apelo ao aformoseamento das suas janelas e varandas fazendo da nossa terra um Sardoal mais florido e mais bonito.
Não esquecendo o conceito que encerra este pensamento prático que diz:
Crianças e flores, são verdadeiros amores.
Novamente o público se manifestou
JORNAL DE ABRANTES
4 de Junho de 1944
Impressões de uma viagem
Sardoal – A Cidade Jardim do Ribatejo
Devo á preciosa amizade dos Srs. Diogo Oleiro e Dr. Armando Moura Neves, o conhecimento de uma pequena e encantadora vila ribatejana, vizinha próxima de Abrantes, digna de visita e atenção de todos nós, não só pelo que há de nela de pitoresco, risonho e saudável no seu aspecto, mas também pelas valiosas obras de arte que se encontram na Igreja Matriz.
O passeio que aqueles meus amigos me proporcionaram ontem, até lá numa tarde doirada, de inesquecível beleza, constituiu para mim uma verdadeira descoberta e vai ficar no meu espírito como uma das mais gratas e surpreendentes impressões de português e viajante.
Quando, um dia Abrantes tiver a boa fortuna de ser considerada oficialmente zona de turismo, com um hotel e uma estalagem típica, característica e saborosamente regional, com os seus miradouros, como os que já têm Santarém, donde se possam admirar panoramas sem par:
A vila do Sardoal tem de ser incluída no número de valores desta região.
Não digo isto para lisonjear o orgulho bairrista quer nós abrantinos, quer dos habitantes do Sardoal.
É como português que faço esta afirmação. Cidade florida chamei um dia a Abrantes. Agora que nome hei-de dar a Sardoal, depois de a ver, como ontem a vi, coroada de rosas. Se me permitem sairei airosamente deste embaraço, designando-a por cidade jardim do Ribatejo. Nem todos concordarão, tenho a certeza. Outros hão-de achar a minha expressão demasiado poética. Mas a poesia é a única coisa que mais próximo se encontra de verdade.
Com efeito, a vila de Sardoal surpreendeu-me com a sua apoteose maravilhosa de trepadeiras e roseirais, o asseio e o arranjo das estradas que lhe dão acesso e das ruas que a articulam, as suas casas antigas, de boa traça arquitectónica e entre elas duas ou três, de que algumas cidades se envaideceriam, mas felizmente, não é só com isto que a vila se enobrece.
A igreja de S. Tiago e São Mateus não unicamente um formoso templo é também um rico museu de arte.
Os quadros a óleo, atribuídos a Miguel Nunes, ou, na dúvida, que nunca foi esclarecida, ao “Mestre do Sardoal”, representando S. João Batista, S. João Evangelista, Nossa Senhora da Anunciação e o Anjo da Anunciação, e ainda, também a óleo, as cabeças de Cristo, numa expressão admirável de dor, divina e humana. De S. Pedro colocada á esquerda e de são Paulo á direita, são elementos representativos de valor enorme e indiscutível de um museu de arte antiga. Figuraram esses quadros na Exposição dos Primitivos.
O Padre Eduardo Dias Afonso que tem pela igreja e pela vida um alto e enternecido amor, mostra-nos em seguida os azulejos que forram as paredes laterais do altar-mor e que são datados de 1703. Ambos os panos, de desenho vigoroso, são consagrados a Santiago, em dois passos da sua vida de religioso e guerreiro. Num, o da direita, vêmo-lo combater os mouros, no outro o da esquerda, em oração a Nossa Senhora do Pilar, que desce do alto dos céus com a sua benção.
Depois a nossa atenção é solicitada para um grupo, em pedra policromada, que deve ser do século XV, representando Nossa Senhora da Piedade.
Templo de tão rico anterior e não o descurei todo, escusado seria dizer, ofereceu também interesse externamente, apesar da sobriedade de linhas e pormenores, com as suas portas, a principal e as duas laterais, em estilo gótico, e a rosácea da fachada, Sardoal pode orgulhar-se também do seu hospital, da Caridade.
Padre Eduardo Dias Afonso é o seu Provedor e ali tem posto o melhor da sua inteligência e do seu coração. Os que se interessam por assuntos de assistência não devem deixar de visitar esta casa, que pode constituir uma lição magnífica para todos que, em várias terras do país, procuram resolver o problema hospitalar. Visitei há meses, a importante vila do Bombarral e o seu hospital, para mim foi uma grande desilusão. Á frente dos destinos do Sardoal estão dois homens dignos de alta consideração: O padre Eduardo Dias Afonso e o Sr. Lúcio Serras Pereira, Presidente do Município. Um grupo não pequeno de pessoas gradas da vila, diz que estes dois homens merecem mais que o objectivo de ilustre já tão banalizado, merecem a designação de beneméritos.
Ali não há questões pessoais. Acima de tudo os homens do Sardoal põem o seu orgulho bairrista.
Tem sido com este orgulho magnifico que a terra se alindou e corou de rosas.
Abrantes, 26 de Maio de 1944
Rebelo de Bettencourt
JORNAL DE ABRANTES
1 de Julho de 1945
Alindemos e Coroemos de Rosas as Vilas e Freguesias
Primavera alta. As árvores revestiram-se completamente de folhagem verde e na Avenida as rosas em grandes festões, embriagam-nos com o seu perfume e encantam-nos os olhos com a sua beleza incomparável.
Mas não é o panegírico de Lisboa que eu vou romanticamente entreter nesta minha presente crónica.
Neste momento em que escrevo, o meu pensamento está inteiramente volvido para uma pequena vila ribatejana que visitei o ano passado, também num dia de primavera como este, uma vila coroada de rosas, tão pitoresca, tão engraçada que me deu pena que as vilas e freguesias da minha terra não fossem tão floridas como ela.
Chama-se Sardoal a vila a que me refiro.
Em meia hora de automóvel, vai-se de Abrantes até lá.
A preciosa amizade do Sr. Dr. Armando Moura Neves e Sr. Diogo Oleiro, respectivamente director e chefe do Jornal de Abrantes, devo o conhecimento dessa encantadora vila.
O passeio que estes dois amigos me proporcionaram numa tarde doirada, de inesquecível beleza, constituiu para mim uma verdadeira descoberta e vai ficar sem dúvida gravada na minha lembrança e no meu espírito como uma das mais gratas e surpreendentes impressões de português e de viajante pois tendo para admirar de perto, na Igreja Matriz de São Tiago, São Mateus os célebres quadros atribuídos a Miguel Nunes, ou, na dúvida, que nunca foi esclarecido, e talvez nunca venha a ser, ao chamado “Mestre do Sardoal”, não foi apenas um belo museu de arte que me foi dado ver, foi também uma vila encantadora que o destino me colocou em boa hora diante dos olhos.
“Cidade florida, denominei eu, um dia, bela e poética cidade de Abrantes”.
Efectivamente, graças, sobretudo á campanha de bom gosto que o Sr. Diogo Oleiro empreendeu nas colunas do Jornal de Abrantes, as janelas e varandas dos prédios de habitação ostentam vasos com sardinheiras, cravos e rosas, e das paredes de vários quintais pendem trepadeiras que, na época própria florescem com abundância para o encanto dos olhos e deliciar o olfacto.
Depois de ver e descobrir a vila de Sardoal, acudiu-me á lembrança para a crismar de “Cidade Jardim do Ribatejo”.
É possível que nem todos ribatejanos concordarão com a minha legenda.
Talvez os abrantinos sejam os primeiros a discordar, ciosos como são dos seus pergaminhos, das suas glórias e das suas flores.
Outros hão-de classificar excessivamente poética a minha crisma.
Mas, não será poesia a única coisa que mais próximo se encontra da verdade?
Pois repito: a vila de Sardoal surpreendeu-me com a apoteose maravilhosa das suas trepadeiras e roseirais, com o arranjo e asseio irrepreensível das estradas que lhe dão acesso e das ruas elegantes e jeitosas que a articulam, com as suas casas antigas, e um ou outro solar, de bom estilo português, do nosso século XVIII, de que algumas cidades se envaideceriam.
Ao vê-la, nessa tarde luminosa, fiquei com imensa pena, que tanto a nossa cidade, bem como as nossas vilas e freguesias não estivessem também alindados e coroados de rosas, para o encanto dos seus naturais e surpresa grata dos seus visitantes e lastimei igualmente que não tivessem uma colecção de quadros do valor daqueles que fui encontrar na Igreja Matriz de São Tiago e São Mateus e que, no áureo do duplo centenário figuraram na Exposição dos Primitivos, do Museu de Arte Antiga.
Curiosa e original é a traça desse templo, com as suas portas, a principal e as duas laterais, em estilo gótico e a rosácea admirável da sua fachada:
No anterior além dos quadros atribuídos ao “Mestre do Sardoal”, ou Miguel Nunes e que representam S. João Batista, S. João Evangelista, Nossa Senhora da Anunciação e o Anjo da Anunciação, admirei os belos azulejos que alindam e enobrecem as paredes laterais do altar-mor ambos os panos datados de 1703, são consagrados a São Tiago, em dois passos da sua vida heróica e religiosa. Num, o da direita, vemo-lo combater com agilidade e bravura os mouros, no da esquerda, o Santo reza piedosamente em louvor e graça a Nossa Senhora do Pilar que, tendo ouvido o seu rogo e lido os seus pensamentos, desce serenamente dos altos céus, para o premiar com a sua bênção.
O Padre Eduardo Dias Afonso, prior desta Igreja e amigo natural da vila do Sardoal, que nos acompanhou nas visitas ás obras de arte do velho e precioso templo, mostrou-nos ainda, com essa alegria própria de um artista e vamos lá com uma pontinha de bairrismo orgulhoso, um grupo em pedra policromada, consagrado a “Nossa Senhora da Piedade”, e que deve ser segundo conclusões a que chegaram os críticos especialistas da arte, uma obra do século XV.
Á frente dos destinos e dos problemas da linda vila do Sardoal estão dois homens que a população agradecida, considera beneméritos, o já citado padre Eduardo Dias Afonso, que acumula as funções de Provedor do Hospital, esplendidamente instalado no antigo convento de Santa Maria Da Caridade., e o Sr. Lucio Serras Pereira, Presidente do Município.
Ali naquela vila tranquila coroada de rosas, não há questões pessoais, nem derrotismos, nem velhos do Restelo, nem críticas idiotas e azedas, pelo contrário.
Todos gostam de contribuir com quota-parte para o progresso e para o embelezamento dessa encantadora “Cidade Jardim”.
Na Farmácia (Passarinho, á noite) reúnem-se os amigos da vila, para cavaquear e para a discussão serena dos problemas locais.
Estou certo, absolutamente convencido, meus prezados leitores, que quando em Ponta Delgada se deixar de dar ouvidos e atenções derrotistas, que nada fazem e aos velhotes do Restelo, que nunca se deram ao desporto ou á extravagância de raciocinar com o cérebro, estou certo que a nossa terra acenará e de maneira imprevista o seu progresso.
Lisboa, 21 de Abril de 1945
(Diário dos Açores)
Rebelo de Bettencourt