1. Gastronomia Tradicional
A gastronomia tradicional, como depositária de uma herança cultural, é um importante elemento caracterizador da etnografia de cada região e quando a estudamos entramos no mundo das carências ou das abundâncias de cada época ou estrato social.
Ao provarmos, seja num prato de porcelana, de esmalte, alumínio, barro ou vidro, a iguaria preparada, muito nos contarão os seus condimentos, decorações ou cozeduras, da vida dos seus autores.
Não é minha pretensão elaborar um tratado sobre Gastronomia, mas apenas fazer um pequeno percurso pela nossa História, com o cheiro e os gostos que chegam até nós e falar, necessariamente, do Concelho de Sardoal.
Ao pesquisar as referências mais antigas, chego à conclusão que a carne teria uma maior utilização na alimentação geral, não só nos banquetes, mas também nas refeições mais simples e que a introdução do peixe só se realiza à sexta-feira e ao sábado, por imposições religiosas, panorama que encontramos no século XIII.
O manuscrito do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, apresenta-se como um dos primeiros registos escritos da Gastronomia Portuguesa, que começou a ser escrito no século XV e muitas das suas receitas reflectem uma grande antiguidade.
Apresenta-se repartido em quatro secções ou cadernos:
“Caderno dos Manjares de Carne”; “Caderno dos Manjares de Ovos”; “Caderno dos Manjares de Leite”; “Caderno das Cousas de Conservas” (onde se inclui toda a doçaria) - que, muito provavelmente, seriam de início independentes e só mais tarde reunidos e encadernados num só volume.
Por outros documentos da época sabe-se que se comia carne e peixe (frescos ou salgados), ovos, legumes e frutos; que a pimenta e a mostarda, a salsa, os alhos, eram usados; que uma pessoa educada levava à boca um naco de cervo servindo-se apenas dos dedos - dos três primeiros dedos...Que o vinho entrava na confecção dos alimentos e regava, abundantemente, e em todas as mesas, os repastos, complementados por doces em que entravam o mel e(já!) o açúcar.
Os Descobrimentos Portugueses vieram trazer uma autêntica revolução à gastronomia, com todo um conjunto de especiarias - o cravinho, a noz moscada, a pimenta, o gengibre, etc. e ainda com a introdução de diversos géneros alimentícios, hoje, tão vulgares que a maioria das pessoas é levada a pensar que fizeram sempre parte da nossa alimentação, como sejam, a batata, o milho, o tomate, o cacau, a batata-doce, o ananás, o amendoim, a banana, etc..
O tradicional cozido à portuguesa é, no século XVI, o chamado prato de resistência, o prato forte e fundamental da refeição.
Também, por esta altura, torna-se notória a preferência pelo bacalhau e pela sardinha. O bacalhau era importado, sobretudo dos ingleses; quanto à sardinha, o seu apreço era de tal monta que, inclusivamente, em 1456, é autorizada a sua pesca aos domingos e dias santos, exceptuando as festas de Jesus Cristo e da Virgem.
Predilecção de seiscentos eram, também, as alfaces - que aos lisboetas valeu a designação que ainda hoje os distingue, de “alfacinhas”.
Quanto à doçaria, em 1496, o Rei D. Manuel I, que algumas vezes permaneceu no Sardoal, decreta que este “mister” seja apenas desempenhado por mulheres, facto que permaneceu durante todo o século XVI. D. João IV autoriza, então aos homens o fabrico de “obreias” (pasta delgada de massa para colar papéis e fazer hóstias) e “alféolas” (massa de açúcar em ponto com que se fazem vários doces), mas impedindo a sua venda nas ruas, sob pena de prisão e açoites com pregão e baraço.
O Alvará de 19 de Novembro de 1757 é esclarecedor quanto a estas questões, proibindo os homens de assar castanhas às portas, vender alféola, obreias, gergelim, melaço e azeitonas “por ser essa venda exclusivamente destinada ao serviço doméstico e precisa sustentação de muitas mulheres pobres, naturais desses reinos”.
Mas “ coisa de açúcar” têm com D. Manuel e a Madeira as grandes receitas de que os cronistas muito falaram.
A opulência do reinado de D. João V também se traduziu na mesa. Assim o confirma a obra “Arte da Cozinha”, de Domingos Rodrigues, que nostraça ementas com mais de 40 pratos.
Mas a verdadeira arte da confeitaria estava, sem dúvida, localizada nos Conventos e, por exemplo, as Albertas faziam arroz doce com decorações originais atravessadas por setas e cupidos; os bolos secos vinham das zonas do Beato e do Rato, das Trinitárias. De Chelas vinha o manjar branco, depois as Bernardas de Odivelas com o seu esplendoroso fabrico de marmelada, mas também, dos tabefes, penhascos, esquecidos e suspiros.
Com a extinção dos Conventos (1834) muita desta doce fabricação se perdeu, ficando-se apenas com a memória dispersa em freira que abandonaram os Conventos ou das suas criadas.
Julgo estarem neste caso as “TIGELADAS”, um dos doces mais típicos desta região, de que muitas terras se arrogam de terem sido elas as criadoras deste doce delicioso. Quanto a mim, a sua divulgação, depois de sair do segredo dos Conventos, teve origem em Alcaravela, sendo tradição da família Serras, uma das mais antigas daquela freguesia, que a receita foi para ali levada por uma sobrinha do Padre Canastra, que foi, durante muitos, Prior da freguesia de Santa Clara de Alcaravela, há cerca de 160 anos.
As “Tigeladas” são cozidas, tradicionalmente, em tigelas próprias de barro não vidrado, de que uma das receitas para uma dúzia de tigeladas é a que passo a apresentar:
INGREDIENTES
1,5 litros de leite
1 kg de açúcar
6 colheres de sopa de farinha
12 ovos
raspa de limão q.b.
-Batem-se os ovos com açúcar, a farinha e a raspa de limão.
Adiciona-se depois o leite pouco a pouco, continuando sempre a mexer até à altura de levar ao forno, previamente bem aquecido.
As tigelas próprias para fazer estes doces já devem estar no forno e bem aquecidas antes de se lhes deitar o preparado, usando para o efeito um púcaro colocado na ponta de uma vara.
Fecha-se o forno e só decorridos 10 minutos se passa a vigiá-lo amiudadas vezes, picando as tigeladas com um palito, até este sair enxuto.
Servem-se frias, enfeitadas com folhas de laranjeira.
Outros doces tradicionais do Concelho de Sardoal são os “bolos amassados à boca do forno” ou de massa “lêveda” ou levedada, o pão-de-ló, o arroz-doce e, menos vulgares, as farófias, os bolos de coco, os suspiros, etc.
Pela altura dos Santos fazem-se as broas que têm a mesma receita dos bolos amassados à boca do forno ou de massa levedada, sendo-lhes acrescentada a erva-doce e os frutos secos (nozes, amêndoas, avelãs ou pinhões) e as broas fervidas com mel e café e pelo Natal, os fritos de massa levedada(coscorões) e os “beilhós”, com massa de farinha enriquecida com “abóbora menina”.
Com a mudança dos hábitos de vida, em resultado do abandono da agricultura, após a deslocação de grande parte da população para os grandes centros urbanos e para o estrangeiro e com a vulgarização dos electrodomésticos, na sequência da electrificação do Concelho de Sardoal, verificou-se uma profunda alteração nos hábitos alimentares dos seus habitantes.
Talvez, por isso, se justifique a descrição de algumas ementas diárias mais comuns dos tempos mais antigos que transcrevo, com a devida vénia, do livro “ALCARAVELA-MEMÓRIAS DE UM POVO”, do Dr. Augusto Serras:
DEJEJUM - em casa, antes de seguir para o trabalho - pão de milho ou centeio ou parte de uma sardinha, das que eram compradas e salgadas ao domingo, para toda a semana; outras vezes toucinho ou couratos assados.
ALMOÇO - no campo, às 10 horas solares - compunha-se de couve ratinha temperada com um fio de azeite, acompanhada de parte de uma sardinha ou azeitonas ou cebola crua; menos vezes com toucinho ou farinheira, em pedaços reduzidos e pão de milho ou centeio.
JANTAR - no campo, às 14 horas solares - era quase sempre igual ao almoço, quando não era o resto do almoço.
CEIA - em casa, às 8/9 horas da noite - era a refeição mais variada, talvez a mais substancial. Couve ratinha com bagos de feijão e duas batatas desfeitas para engrossar o caldo, com azeite ou um naco de toucinho e pão;
-ou Migalhana, também conhecida por cozinha fervida, que era feita dos restos das couves das refeições anteriores, cozidas com pão de milho esboroado, farinha de milho para engrossar, alho e azeite no prato. Às vezes juntava-se refogado de cebola com uma folha de louro. Comia-se com farinheira ou toucinho assado.
Nos dias de trabalho mais pesado, juntava-se o bucho ou morcela de cozer.
-ou ainda MOLHO FANDANGO, cujos ingredientes são, uma pontinha de bacalhau, cebola e salsa picada, folha de louro, azeite e vinagre. Refogava-se, juntava-se água e farinha e mexia-se até engrossar a gosto.
A couve era o elemento base das três refeições do dia. Dizia-se até que, depois de comer couves dezoito vezes seguidas, sabia-se que era domingo, em que entrava a batata, o grão ou o feijão. Estes eram caros, o azeite pouco, o porco da matança pequeno e tudo tinha de ser dividido e subdividido pela família, para o ano inteiro.
Quando a família estava junta, comiam todos do prato grande, de bordos amarelos, com colheres de lata e garfos de ferro, com cabos de pau, às vezes de corno.
No Inverno comiam à lareira, com o prato grande sobre um banco, ao centro, alumiados pela candeia de azeite, mas quantas vezes pela chama da lareira ou de pinhas a arder.
Para as crianças as mães faziam a mexuda, feita de farinha milha fervida e mexida, enquanto cozia, com umas gotas de azeite e uns pós de açúcar por cima.
O pão de milho ou de centeio não era farto. O de trigo era para algum dia festivo, casamento, Festa Grande, quando se abatia a badana, ovelha ou cabra velha ou maninha. As galinhas eram para os doentes, os ovos para vender e fazer algum dinheiro; havendo cabras ou ovelhas, também os queijos eram muitos para vender. Arroz ou macarrão, só para os ricos. Bacalhau, mesmo a pataco, era caro para as bolsas de muita gente.
Julgo poder afirmar que a castanha terá tido um lugar importante na alimentação dos povos desta região. Se nos recordarmos que o castanheiro era uma das espécies vegetais dominantes do Concelho de Sardoal, até há cerca de 100 anos e que a batata, o milho, o feijão, o tomate e outras espécies, só foram introduzidas em Portugal, nos séculos XVI e XVII, penso que o fruto do castanheiro, teria tido um lugar importante na alimentação humana, em tempos recuados, já que se podia conservar fresco até Abril/Maio e muito mais tempo se a castanha fosse pilada.